Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, fevereiro 03, 2007

O país encavacado

De uma coisa podemos estar certos, o subdesenvolvimento fica-nos tão bem, fica-nos a matar, para ser mais exacto. O atraso, como um Polo Ralph Lauren ou umas cangalhas Gucci, assenta-nos que nem uma canção da Micaela ou da Ágata (ou, para os mais intelectuais, Paco Bandeira, José Cid ou Paulo de Carvalho). Combina com os cães de loiça no quintal e as marquises de alumínio melhorando o traço de notabilizados arquitectos. Ao ver um grupo de filósofos portugueses saírem do seu barril para defenderem o não, pensei tratar-se de um desemperramento de Gaston Bachelard, encalhado numa psicanálise de trazer por casa e esquecido depois da falência da PUF (Presses Universitaires de France) e o acoitamento da metafísica no consultório de bruxos e videntes. Que uns lusos coca-bichinhos modernizaram o corte epistemológico adaptando-o à faca eléctrica ou ao Corel Paint Shop Pro. Que vinha aí mais manteiga racionalista rica em Ómega 3 para baixar o colesterol e desentupir as veias do conhecimento científico. Que, com o contributo teórico lusitano, a “filosofia do não” nunca seria “nim”. Que orgulho! e não era futebol. Qual não foi o meu espanto quando afinal percebi que vinham burrificar sobre a essência da vida. Pouco disseram mas pelos parcos argumentos devem situar a sua origem com o aparecimento da glândula pineal transmitida por Deus no momento do concúbito. Ou outra patacoada com menos fedor a Descartes, mas também datada no tempo, como a preexistência da alma no mundo inteligível de Platão. Falar-se em filósofos portugueses é tão estranho como meter azeite e vinagre no hambúrguer ou acompanhar a pizza com batatinhas a murro. Não existem estes híbridos pratos assim como filósofos portugueses. Agora… se falarmos de fardas e mulheres desonradas já estamos outra vez no real português.

O maior cronista da verdadeira condição portuguesa não foi o Aquilino Ribeiro, nem o Camilo Castelo Branco, nem o Eça de Queirós, nem sequer o Jorge de Sena. Nem pensar nas vedetas Eduardo Lourenço, José Gil ou Eduardo Prado Coelho escrevinhadores de uma realidade de papelão. Quem melhor compreendeu esta caixa de rapé arrecadada no bolso de trás da Europa foi José Vilhena. Alguns dos seus livros podem ser repetitivos mas também o tema não é uma paleta de cores, aproxima-se mais da pescadinha com rabo na boca, do vira o disco e toca o mesmo, do ora choro eu, ora choras tu, mas todos choramos. Numa obra extensa que se podia comprar pelo correio através de selos, cheque bancário, vale postal ou notas, para não privar o leitor da sua companhia, Vilhena retratou uma realidade difícil de engolir, protagonizada por finórios, senhoras limpas pela água benta, senhores bem estabelecidos e sopeiras. “Estou desgraçada”, “Oh, sorte malvada”, “O filho da mãe”ou “O Guerra e o Paz” escurejariam “O malhadinhas”, o “Amor de perdição”, “A relíquia” ou “O reino da estupidez” se tivéssemos coragem de assumir a nossa identidade de atoleimados lapuzes que deram a volta ao mundo mas nunca saíram do mesmo sítio – as berças.

Nalguns livros de Vilhena uma das personagens centrais vinha precisamente desse fabuloso lugar, bucólico na versão poética, fervoroso na religiosidade, e distanciado do conhecimento científico dois séculos e sete anos. Uma rosada moçoila trocava a aldeola natal – que lhe destinaria uma vida na cozinha debruçada sobre as panelas, aguentado na cama as acometidas, santificadas pelo matrimónio, do bêbedo com quem fatalmente casaria, parindo de enfiada duas dúzias de filhos – por uma melhor vida como criada interna de uma família lisboeta. E, por regra, era desgraçada pelo lúbrico patrão que lhe cobiçava as carnes desde o primeiro dia, ou cederia o seu íntimo tesouro enganada pela lábia farsante do menino da casa. (Claro que o “menino” encalhara na Universidade por ser um valdevinos dedicado ao álcool e às mulheres e tinha o corpanzil de um Fernando Mendes). Mas uma coisa a fascinaria na capital – as fardas. Por isso, apesar do arranjinho sexual em casa dos patrões, deixava-se catrapiscar pelos militares que lhe arrastavam a asa. Sempre era uma hipótese de casamento e uma garantia de não terminar na má vida quando o corpo declinasse e patrão fosse à caça de frangas novas. Infelizmente, a mentalidade de sopeira e o fascínio pelas fardas é uma fulcral característica do ser português.

Na manhã do dia 25 de Abril de 1974, num self-service na rua Brancaamp, o gerente perante as notícias de movimentações militares e prevendo uma bernarda das antigas, com tiros, choro e ranger de dentes, dispensou os empregados. Por coincidência, a casa fora inaugurada no dia 25 de Abril de 1973 e para festejar um ano de existência encomendara umas flores. Para que estas não se estragassem inglórias, pediu aos empregados que as levassem do armazém. Celeste Martins sobraçou um molho de cravos vermelhos e meteu-se no metro da Rotunda. Morava no Carmo. Se havia possibilidade de traulitada era melhor refugiar-se na segurança da casinha. (Como sabemos foi o que também fez Jorge Sampaio nesse dia). Chegada à rua 1 de Dezembro deparou-se com uma coluna de tanques. Perguntou curiosa ao soldado encavalitado num deles que os trazia por tão inusitado lugar. Ele respondeu-lhe que iam ao Carmo prender o Marcello Caetano que se refugiara no quartel da GNR e cravou-lhe um cigarro. Ela não tinha. Não fumava. Mas queria agradar porque simpatizava com os tropas. Em vez do paivante deu-lhe um rubro cravo que ele colocou na espingarda. O gesto foi logo copiado pelos seus colegas a quem Celeste foi distribuindo o resto do molho. E, assim, deste lusitano gostinho por fardas, nasceu a mística da aprilina flor.

O reality show do sargento Luís Gomes, preso por se negar a entregar a filha (quase) adoptiva, continua a mostrar o grande sopeirame que somos nós e que o embevecimento pelas fardas está em alta. Quando sai do tribunal, o sargento, sempre aprumado na sua farda de gala, parece promovido a general cheio de penduricalhos ao peito por bravura em combate e benfeitorias à Nação. Homens abraçam-no comovidos. Velhas atiram-se aos seus pés histéricas contra a injustiça. As gargantas gritam-lhe vivas e apupam o pai biológico como se este fosse o progenitor do "Rosemary’s baby". Um belzebu que vem reclamar a sua semente para a enveredar pelo caminho do Mal. A imparcial imprensa portuguesa participa do arraial. Com a isenção que lhe reconhecemos relata as aventuras e desventuras da família de afecto, do pai adoptante, da mãe fugitiva e da feliz criança, mostrando que neste assunto não toma partido. O Ministério Público troca-tintas emenda a mão para dar ao povo o exigido circo e já pede o fim da espinhosa prisão. Um homem fardado está preso, urge libertá-lo, ouve-se de lés-a-lés.

A Justiça treme. No fim de contas, juízes e procuradores são homens e mulheres que adoram fardas. O curso superior não lhes lavou a sua índole sopeiral. Incapazes de aplicar a justiça salomónica porque, depois de cortada a criança ao meio, seria impossível chegar a acordo sobre quem ficava com uma parte e quem ficava com a outra, talvez seja possível aplicarem uma justiça “solnadónica”. Como naquela guerra contada com humor pelo Raul Solnado em que as balas escasseavam. Os soldados quando lá chegavam recebiam o fardamento, o fuzil e apenas uma bala. Para resolver o problema eram aconselhados pelos superiores a amarrá-la numa guita para a poderem puxar e reutilizar outra vez. Assim, atava-se uma guita na perna da criança e cada uma das personagens em liça pela sua posse podia puxar do cordel para lhe dar o seu amor. Como estamos mais evoluídos usava-se um fio de nylon para não se partir a guita e perder a criança. E têm que aproveitar agora, pois com as crianças sucede uma coisa curiosa – elas crescem. E, depois, na idade adulta, podem dar umas galhetas bem afinfadas nos pais adoptantes e biológicos e abandoná-los no corredor do hospital.

Fardas e mulheres desonradas são o nosso pudim intelectual. Um alimento rico em calorias que nos faz vibrar de energia. E, não admira que se barafuste, como carroceiros sem sebo para as rodas, com as declarações do ministro da Economia na China. Chocados com uma realidade que não queremos aceitar. Citar os baixos salários como um dos factores de competitividade em Portugal é o mesmo que soltar um boato cabeludo sobre uma figura pública numa revista cor-de-rosa (que se chamavam antigamente "revistas de sopeiras"). De facto, o ministro proferiu uma mentira lesa o bom-nome de Portugal.

5 Comments:

  • At 3:39 da manhã, Blogger A Chata said…

    Será que levaram a Maria Alice para a China e para a India para espiar e descobriram que os Chinese e os Indianos gostam imenso de mão de obra barata?

     
  • At 3:39 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    que tal um novo 25 de abril?
    desta vez sem cravos....

     
  • At 2:49 da tarde, Blogger A Chata said…

    25 Abril com cravos ou sem cravos acaba sempre no Triunfo dos Porcos...
    Todos os animais são iguais mas, alguns são mais iguais que outros.

     
  • At 10:16 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Tenho andado a dar voltas aos neurónios para me lembrar de uma Maria Alice e não consigo. Sei que havia uma magistrada qualquer à frente do SIS no consulado PSD, mas creio que agora o espião-mor do reino é um homem. Neste país são tantos os ICCs que não tenho espaço na memória para todos os nomes.
    Ia fazer outro tipo de comentário sobre um outro 25 de Abril mas este também é valido. Ia dizer que houve quem defendesse, que pelo facto de não ter havido sangue (excepto de uns azarados), Portugal não saiu da cepa torta. E davam o exemplo de Espanha que teria lavado o progresso em sangue na Guerra Civil.
    E duvido que os nossos castrenses sejam capazes de levantar o rabo bem pago da secretária. No tempo do Marcello estavam divididos em “os fogo na guelra” e “ a brigada do reumático”, actualmente as chefias são todas descalcificadas dos ossos. Dão bons comentadores na TV das guerras dos outros. Eles, não são capazes de ganhar nada, nem ao berlinde ou aos tazos.
    Ainda mais uma observação sobre a ideia de assaltar bancos. Caso não tenha reparado nos nossos dias são os bancos que assaltam as pessoas e não o contrário. Hoje, Bonnie & Clyde ou John Dillinger estaria atolados nas taxas de juros…

     
  • At 12:29 da tarde, Blogger A Chata said…

    A Maria Alice era (se não estou enganada no nome) a espia da guerra do Solnado que era enviado ao inimigo com um laço na cabeça.

    Conhece o principio de Dilbert de Scott Adams?

    Aquele que veio substitutuir o principio de Peter e que diz:
    "As pessoas mais incompetentes são sistemáticamente promovidas para cargos onde se pensa que possam prejudicar menos"

    Acho que é esse principio que cada vez mais se aplica na selecção de chefias com os resultados que constatamos todos os dias.

    Quanto aos bancos acho que tem toda a razão, o problema é que ninguém os prende nem sequer os coloca em lista de espera.

    A minha decisão de mudar de carreira fica ainda mais facilitada porque,lá diz o ditado, ladrâo que rouba a ladrão tem 100 anos de perdão.

     

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