Cultura com açúcar, sal e pimenta
Entre o infindável catálogo de coisas boas que a presidência de Wbush trouxe ao mundo duas perdurarão, porque representam um pequeno passo para a Humanidade, e um grande salto para o homem. O inverso da frase que Neil Armstrong levou na ponta da língua para a lua. Na terra, a curvatura do espaço-tempo privilegia os saltos do homem, mais difíceis de executar sem as patas de um canguru ou de uma pulga. O primeiro prego espetado na nossa felicidade pelo americano “número um” foi a reabilitação para a história da música do grupo new wave The Knack. Ao trazê-lo no seu iPod, para ouvir “My Sharona” ou “Good Girls Don’t (But I Do)” durante as corridas de manutenção pelos frondosos bosques de Camp David, ou nas engraçadas tentativas para manobrar o Segway no rancho Crawford, alertou as pessoas para esta pérola da indústria discográfica americana da década de 80. A malta mais fixe dentro dos neo-conservadores de pronto viu no álbum “Get the Knack” o seu “Blonde on Blonde” (Bob Dylan). O zénite para abanar a carola e beber inspiração nas letras, num início de século dançante, mas ligeiro do ponto de vista intelectual.
A outra boa nova do perspicaz inquilino da Casa Branca situa-se na área das partidas deste mundo para o outro. Wbush, numa genial solução para facilitar esta chata transição, acabou com o “pobre diabo”. Antigamente quando um tipo, sem saber ler nem escrever, se via envolvido numa alhada que lhe era estranha e batia a bota, ia desta para melhor apenas por estar no local errado na hora errada, no dia seguinte os jornais noticiavam que “morreu um pobre diabo”. Equivalia ao azarado. Ao que fica entalado na porta automática. Aquele que leva com a cagadela de pombo no meio da multidão. Na nova terminologia para etiquetar defuntos, introduzida por Washington, foram banidos os “pobres diabos”, à nossa volta só morrem islamistas, fundamentalistas, terroristas, criminosos… Se a aviação americana rebenta com uns pastores na Somália, não eram uns pobres diabos que estavam a pastar as chibas, eram um grupo de islamitas que se preparava para um lauto banquete de cabra estofada. Se explode uma escola corânica no Paquistão, não morreram uns pobres diabos que passavam os dias a abanar a cabeça em orações, mas sim uns fundamentalistas preparando-se para estoirar o nosso bairro. Se um gajo morre moído de pancada durante um interrogatório, não foi um lamentável acidente que apagou um alegado suspeito, mas um perigoso terrorista que esticou o pernil.
Portugal habituado na simplicidade franciscana adoptou esta útil new-speak. Se um polícia mata um acelera, não juntemos mais lágrimas ao mar salgado, ele tinha cadastro, portanto, não estava a aprontar coisa boa de certeza. Ou, então, estava referenciado pelas forças de segurança como potencial candidato a iniciar, em breve, uma carreira no crime. Assim se explica que o douto Tribunal Criminal do Porto produza peculiar sentença. Condenou um guarda da PSP, acusado de ter matado um assaltante de viaturas em 2002, numa pena de 180 dias de multa, pelo crime de “negligência inconsciente”. Saltando por cima do abissal significado desta jurídica expressão, vale a pena prestar alguma atenção à multa, que é de… quatro euros/dia. Uma vida no escalão mais baixo da hierarquia social vale um pequeno-almoço jeitoso durante 180 dias, precisamente porque a nossa sociedade segregou para um pardusco limbo as vidas daqueles que, segundo os donos da opinião, não valem um caracol. E os donos da opinião são os donos de tudo o resto. Alcançamos o ponto em que de acordo com Guy Debord: “pela primeira vez, os mesmos são os senhores de tudo o que se faz e de tudo o que se diz”.
Em Portugal, o fim dos “pobres diabos” foi mais radical, ultrapassou o âmbito social no sentido estrito, para invadir a zona da cultura no sentido comercial. O deserto de almas que atravessou o país na oferta de produtos culturais para consumo imediato terminou. O sucesso da exposição sobre Amadeo Souza-Cardoso na Gulbenkian só tem par, em termos de afluência de público, na estreia do clássico da sétima arte “A Garganta Funda”, na ida década de 70. Por regra, nas exposições de arte a peça mais interessante na galeria costuma ser o inevitável extintor que decora uma das paredes. Mas se aparecer um tanganhão dourando a mercadoria com modernismos e cubismos e outros ismos, as pessoas, fartas de serem consideradas uns pobres diabos a leste das correntes artísticas, acorrem aos magotes. Cem mil visitantes esqueceram o subdesenvolvimento cultural em casa. Três horas numa bicha para comprar bilhete e aceder ao cafarnaum prenhe de objectos maravilhosos pendurados nas paredes, e ainda respondiam aos jornalistas quão felizes estavam por terem esta rara oportunidade. A reputada e recatada Gulbenkian abriu durante a noite, como uma loja de conveniência, ou bordel, para satisfazer os seus clientes. Na boa maneira de ser portuga, os latentes apreciadores de arte deixaram para o último dia a ida ao Amadeo, como se a exposição fosse a conta da luz ou da água ou o impresso do IRS.
Entre o infindável catálogo de coisas boas que a presidência de Wbush trouxe ao mundo duas perdurarão, porque representam um pequeno passo para a Humanidade, e um grande salto para o homem. O inverso da frase que Neil Armstrong levou na ponta da língua para a lua. Na terra, a curvatura do espaço-tempo privilegia os saltos do homem, mais difíceis de executar sem as patas de um canguru ou de uma pulga. O primeiro prego espetado na nossa felicidade pelo americano “número um” foi a reabilitação para a história da música do grupo new wave The Knack. Ao trazê-lo no seu iPod, para ouvir “My Sharona” ou “Good Girls Don’t (But I Do)” durante as corridas de manutenção pelos frondosos bosques de Camp David, ou nas engraçadas tentativas para manobrar o Segway no rancho Crawford, alertou as pessoas para esta pérola da indústria discográfica americana da década de 80. A malta mais fixe dentro dos neo-conservadores de pronto viu no álbum “Get the Knack” o seu “Blonde on Blonde” (Bob Dylan). O zénite para abanar a carola e beber inspiração nas letras, num início de século dançante, mas ligeiro do ponto de vista intelectual.
A outra boa nova do perspicaz inquilino da Casa Branca situa-se na área das partidas deste mundo para o outro. Wbush, numa genial solução para facilitar esta chata transição, acabou com o “pobre diabo”. Antigamente quando um tipo, sem saber ler nem escrever, se via envolvido numa alhada que lhe era estranha e batia a bota, ia desta para melhor apenas por estar no local errado na hora errada, no dia seguinte os jornais noticiavam que “morreu um pobre diabo”. Equivalia ao azarado. Ao que fica entalado na porta automática. Aquele que leva com a cagadela de pombo no meio da multidão. Na nova terminologia para etiquetar defuntos, introduzida por Washington, foram banidos os “pobres diabos”, à nossa volta só morrem islamistas, fundamentalistas, terroristas, criminosos… Se a aviação americana rebenta com uns pastores na Somália, não eram uns pobres diabos que estavam a pastar as chibas, eram um grupo de islamitas que se preparava para um lauto banquete de cabra estofada. Se explode uma escola corânica no Paquistão, não morreram uns pobres diabos que passavam os dias a abanar a cabeça em orações, mas sim uns fundamentalistas preparando-se para estoirar o nosso bairro. Se um gajo morre moído de pancada durante um interrogatório, não foi um lamentável acidente que apagou um alegado suspeito, mas um perigoso terrorista que esticou o pernil.
Portugal habituado na simplicidade franciscana adoptou esta útil new-speak. Se um polícia mata um acelera, não juntemos mais lágrimas ao mar salgado, ele tinha cadastro, portanto, não estava a aprontar coisa boa de certeza. Ou, então, estava referenciado pelas forças de segurança como potencial candidato a iniciar, em breve, uma carreira no crime. Assim se explica que o douto Tribunal Criminal do Porto produza peculiar sentença. Condenou um guarda da PSP, acusado de ter matado um assaltante de viaturas em 2002, numa pena de 180 dias de multa, pelo crime de “negligência inconsciente”. Saltando por cima do abissal significado desta jurídica expressão, vale a pena prestar alguma atenção à multa, que é de… quatro euros/dia. Uma vida no escalão mais baixo da hierarquia social vale um pequeno-almoço jeitoso durante 180 dias, precisamente porque a nossa sociedade segregou para um pardusco limbo as vidas daqueles que, segundo os donos da opinião, não valem um caracol. E os donos da opinião são os donos de tudo o resto. Alcançamos o ponto em que de acordo com Guy Debord: “pela primeira vez, os mesmos são os senhores de tudo o que se faz e de tudo o que se diz”.
Em Portugal, o fim dos “pobres diabos” foi mais radical, ultrapassou o âmbito social no sentido estrito, para invadir a zona da cultura no sentido comercial. O deserto de almas que atravessou o país na oferta de produtos culturais para consumo imediato terminou. O sucesso da exposição sobre Amadeo Souza-Cardoso na Gulbenkian só tem par, em termos de afluência de público, na estreia do clássico da sétima arte “A Garganta Funda”, na ida década de 70. Por regra, nas exposições de arte a peça mais interessante na galeria costuma ser o inevitável extintor que decora uma das paredes. Mas se aparecer um tanganhão dourando a mercadoria com modernismos e cubismos e outros ismos, as pessoas, fartas de serem consideradas uns pobres diabos a leste das correntes artísticas, acorrem aos magotes. Cem mil visitantes esqueceram o subdesenvolvimento cultural em casa. Três horas numa bicha para comprar bilhete e aceder ao cafarnaum prenhe de objectos maravilhosos pendurados nas paredes, e ainda respondiam aos jornalistas quão felizes estavam por terem esta rara oportunidade. A reputada e recatada Gulbenkian abriu durante a noite, como uma loja de conveniência, ou bordel, para satisfazer os seus clientes. Na boa maneira de ser portuga, os latentes apreciadores de arte deixaram para o último dia a ida ao Amadeo, como se a exposição fosse a conta da luz ou da água ou o impresso do IRS.
Na antestreia do filme “Branca de Neve”, no cinema São Jorge, uma jornalista chagava o juízo de João César Monteiro com o comezinho facto dele ter desbaratado 84 mil contos de dinheiros públicos num filme sem imagem. Perante a insistência da periodista, que não se calava com a pergunta, se ele achava bem andar a gastar o dinheiro dos contribuintes portugueses daquela maneira, o realizador respondeu: “quero é que os portugueses se f***”. E deu o mote para o consumo de cultura em Portugal. Num país em que o maior acontecimento cultural dos últimos anos foi o aparecimento dos “Morangos Com Açúcar”. Uma fábrica de actores e músicos. Um terreno onde desabrocharam talentos mil. A kriptonite que feneceu as gerações sem futuro. Os visitantes da Gulbenkian depois da passeata em frente dos quadros foram para casa ver as telenovelas da TVI, SIC ou RTP. Corolários naturais da evolução cultural em Portugal. Um país onde Caronte, o barqueiro do Inferno, levou os pobres diabos para o lago Estige e poupou os consumidores esclarecidos.
3 Comments:
At 12:01 da tarde, A Chata said…
"Condenou um guarda da PSP, acusado de ter matado um assaltante de viaturas em 2002, numa pena de 180 dias de multa, pelo crime de “negligência inconsciente”. "
Não será perigoso permitir a uma pessoa inconsciente e negligente andar armada?
At 9:46 da tarde, Táxi Pluvioso said…
Vou ainda mais longe. Se está inconsciente como pode ter disparado. Encontrei no site dos Comandos que o homem vive na Suiça mas sonha em voltar a vestir a farda da PSP agora que o tribunal o lavou.
At 12:04 da tarde, A Chata said…
São as perolas de "justiça" de alguns dos nossos juízes.
Ainda me lembro daquela "perola" sobre as jovens inglesas que vieram passear na 'coutada do macho latino' e foram atacadas.
E agora a juíza que tratou uma criança de 5 anos como peça de mobilia e resolveu entrega-la ao dono original que a tinha deitado fora.
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