Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

quarta-feira, dezembro 27, 2006


O euro de Natal

Agora que o Natal acabou dentro e à volta dos caixotes de lixo, num feérico colorido de vulgarucho papel de embrulho, e stylish sacos greeting seasons. Época por excelência dos padres e comerciantes de boas vontades, de encherem as igrejas de óbolos e almas, e as lojas de Multibancos e cartões de crédito, auriluzindo as vertentes espiritual e económica da Humanidade. Época tramada para todos os animais, especialmente o tradicional bacalhau, o imperdoável peru, o caprichoso polvo ou o sacrificial cabrito. Época do circo e do centro comercial foi escolhida pelos portugueses para fugirem ao tetérrimo futuro. Nela se refugiam para protecção e sonhos como uma virgem na infibulação. Mas agora que findou eis chegada a hora do euro de Natal – euro que substituiu o conto no início do século XXI, enterrando o natalício Dickens dos três fantasmas, unidos em mais uma santíssima trindade: o fantasma de carne e osso.

O fantasma de carne e osso traz-nos a trilogia do “Senhor dos anéis” (a estopada fílmica seleccionada pelas estações de televisão para continuar a chaga aberta por idêntica repetição natalícia do “Música no coração”). Traz-nos uma mistura melodramática nos telejornais, que começam com um sério destaque do número de mortos nas estradas, enriquecido pela pedagogice de GNRs embarretados de estranhos bonés com aquele grande frontispício virado para cima, para logo passarem para democráticas reportagens sobre consoadas nos variegados lares portugueses. Traz-nos boas novas como: “Portugal gastou 4 mil milhões no Natal”, “quase mil euros por segundo gastos no Natal” e “movimentados 194 milhões de euros por dia”. Traz-nos uma pausa no “Processo Casa Pia”, “Apito Dourado” e na produção literária de Carolina Salgado. O fantasma de carne e osso traz-nos tudo menos visões do passado, presente e futuro. Mostra-nos que o tempo parou em Portugal e… não foi na estação certa.

O primeiro-ministro apareceu num fundo de tons dourados para dar a habitual dose de 10cc de esperança. Um discurso que a oposição entendeu ser dirigido ao país da carochinha, onde todos os cidadãos encontraram uma moedinha no chão e ficaram janeleiros ricos, e felizes amodernaram a infantil lengalenga: “quem quer casar com um português. Tão formoso e bonitinho. O vigésimo cidadão europeu na riqueza per capita”. O resto da população sob o efeito do choque hiperglicémico natural nesta festiva quadra desviou a atenção para o campeonato de futebol inglês. Bem vistas as coisas, na sua mente, o primeiro-ministro, não delirava, construía o espaço socialista do mundo economicamente liberalizado no velho estilo Malharmé – “espaços, podia dizer: imaginários. Toda a existência é assim”.

O fantasma de carne e osso não é a parte etérea que se separou de um cadáver esquisito. Ou uma emanação fosforescente do corpo visível. Nem a alma penada do Johnny Rotten a gritar “no future”. Antes será a dura realidade a cantar “ I did it my way” nas vozes de Frank Sinatra e Sid Vicious. Porque Portugal tem futuro, que começa no dia depois de ontem, que a liberalização dos aumentos colora com uma divertida matemática. Os aumentos na água, rendas, taxas de juro, combustíveis são à descrição. No pão será 20%, nos transportes públicos 2.1%, nas portagens 3%, na electricidade 6%, nos medicamentos comparticipados pelo Estado 1 a 5%... Por regra, aumentam acima da taxa de inflação mas esta não tuge nem muge como se nada fosse com ela. Uma curiosidade tirada do quotidiano que os professores deveriam aproveitar para motivarem os alunos, provando afinal que a matemática não é uma abstracta disciplina sem utilidade para quem sabe contar pelos dedos, mas uma coisa engraçada que podem usar para enganar os pais no momento de cravar mais um jogo para a consola ou o cartão Visa para sair à noite.

Cada vez mais nos aproximamos do Natal queirosiano. Da alvinitente neve acumulada nos telhados e ruas, do parque de pesados portões fechados, da mãe e filhos vestidos de farrapos, das inalcançáveis quentes janelas das casas ao longe na noite. Porque, apesar do simbólico gesto de muitas Câmaras Municipais não dando tolerância de ponto no dia 26 em nome da produtividade (vá lá saber o que produz uma Câmara Municipal?), para o ano engrossará o número dos sem-abrigo e para muitos cidadãos restará na ceia de Natal rabanadas de vento, lampreia de impostos e o buraco do bolo-rei.

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