Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

terça-feira, maio 22, 2007

Coisas para não pasmar

Mês de Maio é mês de Portugal. Esquece-se o trabalho e pensa-se em peregrinar. Dá-se corda aos sapatos que se faz tarde, pelas bermas das estradas, com alegria no coração e uma melodia confortante nos lábios para, em Fátima, pôr uma vela, engolir uma hóstia e acenar um lenço branco à estátua da virgem. Enfim… viver la vida loca, versão portuguesa.

Em Maio, Marco Paulo soa como Dean Martin. Em Maio, planta-se uma cepa torta e nasce uma videira direita como uma linha recta euclidiana. Em Maio, papas de sarrabulho são benfazejas como canja de galinha. Em Maio, calhambeque é Lamborghini Gallardo Spyder. Júlio César lixou-se nos idos de Março, nós ansiamos por um perpétuo Maio, onde o saxífrago mar nos prepara a praia para regíneos banhos (tipo rainha, com direito a tudo. Pente, espelho, bâton e o creme muito bom p’ra bronzear. O rádio portátil e o biquini encarnado e os óculos de sol - não p’ra chorar como cantarolava a Natércia Barreto - mas p’ra botar estilo fashionista). Nada dá errado em Maio! Portanto, não admira vermos o desluzido líder da oposição, embalado pelo (er…imprevisível) retumbante triunfo de Alberto João na Madeira, bradar aos ventos alísios: “é minha convicção que hoje começa a arrancada para a vitória em 2009” (upa, upa, nota dez pelo pipilar optimista). Nem saber que a EDP, num esforço de hercúlea gestão, vai distribuir dividendos duas vezes por ano. “Hercúlea”, porque, como todos sabem a empresa é deficitária. Andamos a alimentar o computador, a TV e a torradeira com energia ao preço da L. Casei Imunitass. (Numa tentativa de renovar as lusas metáforas recorro à bactéria Lactobacillus casei. Se cada Actimel tem dez mil milhões, então deve ser mais barata que a “uva mijona”). E, outrossim, é normal que Paulo Macedo, o Rambo da Direcção-geral dos Impostos, seja distinguido, não com um, mas com dois prémios por bons desempenhos na Função Pública.

Que eu saiba, duas palavras apenas, devemos recordar enquanto jovens, porque nos abrirão muitas portas ao longo da nossa ascensão pela vida. São elas: “puxe” e “empurre”. O resto tem o valor de um singelo mija-burro (narciso-de-inverno) para uma florista. Serve para decorar a necessária palração decorrente da condição humana que não consegue ter comedimento no falar, como aconselhava Wittgenstein. Talvez possamos ponderar as “famosas últimas palavras” como úteis de ensinança, pois, perante a senhora da foice todos se borram e o discurso sai fluído. Mirando a lâmina da guilhotina pelo canto do olho, consta que as últimas palavras de Maria Antonieta para o carrasco foram: “malvado! Malvado!”. (Outros dizem que, por ser uma austríaca vaidosa, teriam sido: “não me descomponha!”). De qualquer maneira, ambas fariam sentido diante da enrascada situação. O mesmo não se pode dizer da cacofonia jornalística dos últimos dias. Começaram por bradar cai o Carmona e a Trindade crááááás! tump! temos matéria para vender jornais durante semanas e cedo se viraram para o drama no Algarve (transformado num reality-show). Nestas condições de pressão para produzir converseta não será imprescindível um miiológo para concluir o destino das moscas. (Nenhuma entrou na boca dos nossos croniqueiros, logo, saíram asneiras a pote).

Bater no Carmona tornou-se o desporto nacional dos comentadores, ensaístas e outros que tais. No que diz respeito à relação do cidadão com a Justiça esqueceram os factos da vida. E apresentaram os acontecimentos no bom estilo rato Mickey (o muito bom) e João Bafo-de-Onça (o muito mau) assaz utilizado pela administração Wbush para justificar os seus actos. (Carmona era o mau-da-fita, entrementes virão os bons). No momento judiciário que vivemos essa relação do cidadão com a Justiça estende-se por três níveis. Em primeiro lugar, nos crimes que atormentam o nosso imaginário, como o terrorismo e a pedofilia, recorre-se ao agent provocateur para acelerar o processo de encarceramento dos facínoras. Um elemento das forças do Bem (do clube Mickey) infiltra-se no meio dos potenciais criminosos (do clube Bafo-de-Onça) incitando-os a cometer os seus celerados actos. Este método é usado e abusado nos Estados Unidos bushie. Por exemplo, as autoridades americanas recorreram aos serviços da actual Miss América, Lauren Nelson, uma moçoila de 20 anos, de Lawton, Oklahoma, com aspecto de adolescente, como isco para caçar “predadores sexuais”. Mandaram a rapariga tentar uns tipos ansiosos de carne nova e depois pumba! foi só colocar as algemas. (Escusado será dizer que toda a operação foi gravada para o programa de TV “America’s Most Wanted”. Não há América sem televisão. Até podemos actualizar Descartes pela via da propriedade privada - on cable TV, ergo sum).

O outro episódio relaciona-se com o apavorante terrorismo. Por regra, um grupo de amigos muçulmanos, com as idades compreendidas entre os 15 e 40 anos, são imediatamente referenciados pelas autoridades policiais como virtuais terroristas. Para testar lealdade a bin Laden (e à Jihad) ou ao Estado (e ao Deus benigno) envia-se um agente infiltrado. Sucedeu no início do mês com uma “conspiração” para atacar Fort Dix, em New Jersey, e matar o maior número de soldados americanos possível. O caso foi despoletado quando um empregado de uma loja alertou o FBI para uma “perturbante” cassete vídeo que recebera para ser duplicada. Nesta via-se uns tipos na casa dos vinte anos disparando armas gritando pela Jihad e “Allah Akbar” em árabe. O grupo era constituído pelos irmãos Duka, vindos da ex-Jugoslávia, Eljvir (23 anos), Shain (26 anos) e Dritan (28 anos), um jordano taxista de Filadélfia, Mohamad Ibrahim Shnewer (22 anos), um turco, Sedar Tatar (23 anos), que trabalhou numa loja 7-Eleven e Agron Abdullah (24 anos) também nascido na ex-Jugoslávia e empregado num supermercado Shop-Rite. Eles teriam prospectado o seu alvo vigiando vários quartéis mas escolheram Fort Dix por razões de alta estratégia terrorista. Um deles conhecia o interior destas instalações militares por lá ter entregado pizzas. O FBI e a Joint Terrorist Task Force saíram no seu encalço. Introduziram dois informadores pagos para vigiar os passos dos terroristas e na sacramental venda de armas deitaram-lhes a luva. Quando o grupo decidiu comprar três metralhadoras automáticas AK-47 e quatro semi-automáticas M-16 para executar o ataque, o vendedor de armas, desencantado pelos informadores do FBI, era um… agente do FBI.

O segundo método usado pela Justiça para espevitar resultados é a implantação de provas. Não custa nada e o sucesso é garantido. A nossa Polícia é fã deste processo para apanhar arraia-miúda e alguns graúdos desprevenidos. E, por último, ainda mais simples cantariam os The Gift, todas as pessoas são passíveis de serem arguidas e presas. Seja um chulo de esquina, ou uma irmã Reparadora Nossa Senhora das Dores, podem acabar no chilindró, se tanto o “querer quiser” (a solenidade deste acto de Estado exige uma lira poética). Tal como diria Nero Wolfe para o seu assistente Archie Goodwin, (personagens dos livros policiais de Rex Stout), não há crime perfeito, apenas investigações mal feitas. Assim, na boa tradição cristã do Adão caído em desgraça, não há pessoas inocentes, somente recolha de provas e elaboração de acusações atabalhoadas. Por isso, não pasma ninguém, vermos brotar “crimes” pelas costuras da sociedade. Quase toda a gente tem um processo pendente sobre a sua cabeça (como a espada de Demócles, corta, não corta). Pelo que se passa nas Câmaras Municipais, e no colarinho branco em geral, criou-se mais uma doutrina portuguesa – o “corrupcionismo”. É de partir a moca a rir ver os políticos, acossados onde mais lhes dói, clamarem contra a “judicialização” da sociedade, sem terem a mínima noção do que se passa. Calculam ser uma cabala dos juízes, por lhes terem reduzido as férias, conluiados com os bófias que também perderam regalias. (Na realidade as políticas criminais mudaram e com elas as prioridades na área do crime, para que o dinheiro circule com fluidez para os bolsos certos, e não crie verdete nas contas de políticos dispensáveis. Também a informática alterou os métodos de cruzamento de dados permitindo apanhar muita mão na massa. E, mais importante ainda, os polícias, como todos os funcionários públicos, têm de apresentar serviço para não irem parar aos quadros de excedentários).

O jornalismo atingiu mais um zénite na cobertura do rapto de Madeleine McCann. No meio do drama, a miúda teve sorte de ser loira de olho azul, porque se fosse preta de carapinha não desencadeava tanta solidariedade e notícia da galáxia Gutenberg implodida. (Tudo bem em Dafur e arredores!). Clamou-se que a PJ procurava um russo perigosíssimo, pedófilo, com um cadastro do tamanho de uma língua da sogra, como se os jornalistas confirmassem as notícias que transmitem, e, estas não fossem produzidas por entediados, que na longa espera pelo “furo”, se divertem a coscuvilhar. Afinal o tal russo, Sergei Malinka, nem cadastro tinha. Coisa de somenos importância. A notícia estava dada e os jornais vendidos (siga para bingo!). Pelo lado da Justiça, esta investigação provocou uma autêntica revolução na actuação das autoridades portuguesas. Se não fosse a interferência da Polícia inglesa o caso já estaria resolvido, como fizeram com a Joana, a menina desaparecida na aldeia de Figueira. Os autores tudo confessaram e até se fez um filme com a explicação pormenorizada do crime, mas nunca revelaram o destino do corpo. É estranho, muito estranho, mas isso não obstou a que a solução surgisse e o tribunal condenasse. Agora, com os ingleses à perna, os lusos costumes alteraram-se e um suspeito, Robert Murat, num caso desta envergadura não fica em prisão preventiva. (Nem parece o mesmo país que proporcionou a Paulo Pedroso a sua memória do cárcere). Suspeita-se que os ingleses querem mesmo encontrar a miúda e punir os verdadeiros culpados e isso tem dificultado o normal procedimento da Polícia portuguesa.

Mas nem todas as coisas causam familiaridade. Algumas fazem-nos dizer “hmmmm… devem estar a gozar comigo”. E, as “things that make you go hmmmm…” não se resumem a traições conjugais, como cantam os C & C Music Factory, bem podem ser Durão Barroso sem gravata em Sintra, fingindo ser um grande dirigente europeu, ou os maneirinhos democratas, José Miguel Júdice e Saldanha Sanches, saírem no cavalo branco para purificarem a política em Lisboa.

14 Comments:

  • At 5:06 da tarde, Blogger A Chata said…

    "...praia para regíneos banhos (tipo rainha, com direito a tudo. Pente, espelho, bâton e o creme muito bom p’ra bronzear."

    ...e prováveis cancros de pele, e contaminações por virus ou bactérias das cálidas águas...

    Hmmm, esta onda de arguidos está a cheirar-me a falta de "ossos" e os cães começam a morder-se uns aos outros.

    Hmmm, parece-me que o Portas anda a preparar a cama ao Mendes para conseguir um parceiro mais maleável para a futura coligação governamental.

     
  • At 5:10 da tarde, Blogger A Chata said…

    Por coisas de pasmar...

    Já experimento o café Cat poo ?

    Segundo os australianos é uma coisa de pasmar.

    Os grãos são retirados das fezes de um animal tipo gato na Indonésia e a 'bica' sai a 50 dolares australianos.

     
  • At 5:40 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Quando a Natércia Barreto cantava “Os óculos de sol” não havia essas preocupações epidérmicas. As razões porque uso muitas citações retiradas da música são simples. Primeiro, fiquei sem os meus livros. Não eram muitos. Entre 2000 a 3000. E como não gosto de passar informação errada torna-se um cabo dos trabalhos confirmar uma citação e a maior parte das vezes uma impossibilidade. Em segundo lugar, como escrevo com os headphones comecei a prestar mais atenção às letras, que dizem numa frase, aquilo que um ensaísta alonga por duzentas páginas. Em terceiro, não penso comprar mais livros. Hoje defendo a ignorância. A invasão dos bárbaros. Se a civilização românica não deu em nada então que regresse Alberico.

    Claro que havia muitas coisas que nos fazem dizer hmmmmm… mas o post já estava muito longo e tinha que abreviar. Nem falei daquela do professor suspenso por contar uma anedota sobre o diploma de Sócrates. Ainda não percebi bem a coisa. Nem conheço a anedota mas a situação em si é muito hilariante.

    Esse café não deve ser mau, aliás quase tudo o que comemos hoje vem dessa zona específica do corpo. Primeiro está o lucro do empresário, depois a saúde.

     
  • At 9:33 da manhã, Blogger A Chata said…

    Pois é.
    A camada do ozono não estava esburacada e não havia emprendimentos turisticos com esgotos a desaguar ao lado dos banhistas.

    Concordo consigo a ignorância começa a ser uma benção.

    Quando as pessoas tinham uma ideia vaga do que se passava no resto do Mundo só tinham para as apoquentar o que se passava na sua aldeia.


    Gostei dessa imagem Mickey/Bafo de Onça, muito difundida e apreciada pelos nossos 'opinion makers'.

    Tenho pena das pessoas que só conseguem ver a vida a preto e branco porque penso, sempre, na variedade de cores que estão a perder.

     
  • At 11:58 da manhã, Blogger Armando Rocheteau said…

    Regresso em grande!
    Abraço

     
  • At 6:29 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    O Armando sempre simpático nas suas apreciações. Como vês não esqueci a nossa filosofia que não nos ensinou a engraxar sapatos, (praxis), mas deu-nos uma ferramenta importante para fazer comentários jocosos – que, se trabalharmos na DREN, pode ser maldosamente trasvestido de insulto.

    Quanto à aldeia as coisas são ainda mais graves. No fundo não saímos da aldeia. Temos é a mania que alcançamos alguma sapiência, ofuscados que estamos pela ciência e pela técnica. Mas se lermos revistas científicas conceituadas, tipo Lancet ou Nature, vemos que aquilo parece umas folhas de couve de advogados, com direito ao contraditório. Numa página lemos sobre os efeitos benéficos do tabaco. Páginas à frente aparece outro artigo a contradizer os cientistas anteriores. Para não falar naqueles cientistas que alteram os dados para atingir os resultados desejados.

    Em vez de consciência ecológica, se calhar, falta-nos modéstia.

     
  • At 12:54 da tarde, Blogger GPC said…

    Aleluia!

    Faça o favor de demorar menos tempo a postar que me dá cabo dos nervos.

    Dicas pra refazer o conceito de Ciência:
    (Pra, sem apóstrofo. Quid pro quo)

    Ciência não é um compêndio de conhecimentos acabados.

    Em Ciência não há portas fechadas à chave.

    A Ciência aspira ao perfeito mas aceita o medíocre que lhe permita avançar.

    A maior arma da Ciência é a autocorreção. (espontânea).

    Ciência é trabalho aturado, não cogitação astuta.

     
  • At 1:03 da tarde, Blogger GPC said…

    Mas o que é que aconteceu aos seus livros?

     
  • At 4:15 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Escrevi “p’ra” porque é assim que consta na letra da canção. Será da década de 60 ou início de 70, não tenho a certeza, é natural que a grafia tenha mudado, entretanto. Agradeço as correcções para que eu me possa corrigir. Ou até fazer um edit do post se a coisa for muito gritante. Não sou como aquele que nunca se engana. Tomara eu.

    Também não sou radical ao ponto de dizer que a ciência é um engodo. Nada disso. Tem alcançado bons resultados. Apenas chamo a atenção para certas peculiaridades dos nossos orgulhosos tempos. Cientistas alemães afirmam que a cerveja tem efeitos benéficos no corpo. Italianos dizem que é a massa. Portugueses afiançam que é o vinho e o azeite. Está a ver o padrão? Todos têm um produto para vender. Querem ser vedetas pop, recorrem a tudo, inclusive à … ciência. Longe vão os tempos de Ramón e Cajal, por exemplo, fechado num laboratório, provando que a rede de neurónios não é um contínuo. (Modesto como poucos, reduziu o seu salário por lhe parecer exagerado, recusou um título nobiliário e o ministério da Instrução Pública, no Governo de Segismundo Moret. E insurgiu-se contra a atribuição do Nobel da Paz a Theodore Roosevelt “um impetuoso guerreiro e irredutível imperialista”. De facto, uma vergonha para os suecos essa atribuição do Nobel. Mas os europeus sempre andaram de gatas. Não é de agora).

    Para ser franco não sei qual o destino dos meus livros. Talvez alguns vizinhos intelectuais (pessoas que gostam de ter estantes com livros) se tenham banqueteado com eles. Ou foram directos para o lixo. Dariam uma lixeira interessante. Os seminários de Lacan, a obra de Freud, os poemas de Ginsberg ou Tristan Tzara, a obra de Hegel, o “Do It” de Jerry Rubin, “Os cantos de Maldoror” de Isadore Ducasse, “Understanding Media” de McLuhan… seria impossível nomeá-los todos… no meio de frigoríficos esventrados e restos de comida. Quase que daria uma lixeira para Goddard filmar ou para um episódio da série de TV Monty Python’s Flying Circus.

    Esta paragem deveu-se a doença. No entanto, tentarei ser mais rápido na escrita. Mas a minha base de dados está espalhada por uma série (razoável) de cadernos A4 de trezentas páginas. Prevendo que muita informação é o mesmo que nenhuma informação fiz índices do que consta em cada caderno. Mas mesmo assim nesta gestão de informação arcaica o motor de busca é lento. E eu não tenho a memória dos antigos que, para não desenrolarem os papiros com os clássicos, (uma trabalheira infernal), citavam de cabeça.

     
  • At 1:23 da manhã, Blogger GPC said…

    Acho que vou ficar a pensar nos seus livros por muito tempo.
    Queria poder proibi-lo de dar igual destino aos cadernos!
    Apenas me conforta o adivinhar ter-se tratado de um ritual de passagem para um 'estádio mais elevado'.
    Mas dói.

    Na letra da canção consta p'ra e, claro, consta bem porque são versos. Mea culpa.

    Desejo-lhe é saúde. Desejo-lhe é saúde e alegria.

     
  • At 6:16 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    A razão é mais prosaica. Em 1998 fui “amavelmente” “convidado” para passar quarto anos e meio no sistema prisional português. Com direito a prisão preventiva e tudo. Por isso, falo da técnica policial de implantação de provas com conhecimento de causa.

    Pelos vistos eu andava a vender drogas com 1,2% e 1,9% de pureza (acentuo que é percentagem. De um a cem. Não confundir com as notas do 9º ano que vão de um a cinco). Com este negócio eu devia enriquecer, morar numa vivenda com piscina, férias em Las Palmas, carros velozes e mulheres rápidas. Ora, no mundo real, vendendo produtos desta qualidade só me esperaria a cama do hospital, com os ossos partidos, (no mínimo), mas o douto tribunal assim não o entendeu, considerando que havia ali potencialidade de enriquecimento ilícito.

    Há dias vi uma notícia sobre uma investigação à esquadra da Amadora, que desviava droga apreendida para incriminar outros putativos criminosos. (Trata-se de um método de prender avant la lettre, antes do crime ser cometido. Um Minority Report à portuguesa). Como me fizeram isso, desatei a escrever para tudo o que era bicho careta importante no aparelho de Estado – DIAP, ministério da Justiça, Procurador-geral, Presidente da República etc., explicando o meu caso, não a reclamar por Justiça, mas a concordar com o peculiar processo que dá bons resultados no combate ao crime. Para que se deixem de tretas de investigações que todos conhecem o resultado e que gastem o dinheiro noutras coisas. (Suponho que ainda deve haver pessoas à espera do relatório sobre a actuação da polícia na manifestação do 25 de Abril. Aposto que as conclusões são: “actuação adequada à situação”).

    Na altura não sabia do deserto do sul, pois aconselharia que o dinheiro poupado fosse gasto numas casitas para povoar aquilo ou num campo de futebol. Um campo de futebol fica sempre bem, mesmo no deserto, e se por graça divina aparecer uma senhora muito luminosa flutuando por ali perto, então estão lançados no urbanismo, progresso, na civilização. (Qualquer povoador tem de pôr os olhos em Aljustrel). Agora lembrei-me que não mandei o texto ao primeiro-ministro. Vou já retocá-lo para incluir a sugestão de que se povoe a margem sul com as poupanças conseguidas em salários de funcionários dedicados à caça aos gambozinos.

    E, assim, nesta reviravolta da vida, os meus haveres, levou-os o vento.

     
  • At 7:01 da tarde, Blogger GPC said…

    Uau! Nem devia ter contado isso: fico com curiosidades mórbidas!
    Bem, deduzo que teve de se livrar dos livros e que o meu medo do que se passa nas prisões portuguesas (e não me refiro à reclusão nem à solidão que com isso posso) é exagerado.

    Uma explicação para a origem da meditação de mestre que lhe reconheço.


    (Não estou contudo contente por ter provocado uma excepção ao meu princípio básico de não "expôr assuntos íntimos sem pudor" - e, na altura, estava a pensar num blogue do género "morreu-me um filho" que tinha encontrado recentemente. Ora, pensando bem, estive preso, tiraram-me um rim ou levei um tiro num testículo na guerra na Guiné, estão nessa categoria. Não fosse ter a certeza de ser mal interpretado, sugeria-lhe que apagasse.)

    Regressando à normalidade: acerca da ignorância ser uma benção: não segui a bela e o mestre da tvi (e perdi a saída da Clara Pinto Correia que até me interessava cá por coisas) mas vi uma cena muito ilustrativa do assunto. Perguntavam à rapariga "quem é esta senhora" e punham-lhe à frente uma gigantesca fotografia de Edite Estrela. A rapariga não fazia ideia e lembro-me de pensar que devia ser um mundo leve e arejado o daquela rapariga e de estar tentado a ter inveja disso...

     
  • At 10:25 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Não me passaria pela cabeça esquecer ou obliterar qualquer situação da vida. Seja privada ou pública. Isso é para políticos que têm de meter esqueletos dentro dos armários e fazer vista grossa quando a realidade é dura. De facto, as pessoas têm uma ideia errada das prisões. Não são solidão, violência, depravação sexual, como se possa pensar. Quem faz as cadeias são as pessoas que lá estão. Num meio concentracionário é muito importante as relações de poder, se os líderes forem pessoas sensatas, até se vive num bom ambiente. A maior parte dos presos são pessoas normais, muitas delas enredadas num sistema que funciona, não com base na competência profissional, mas na mordomia e exercício arbitrário do poder. O juiz não é um deus que distribui Justiça, com dizia o Nabais, muitas vezes é um simples idiota.

    Não sou derrotista. Posso dizer que foram bons tempos, pois permitiram-me conhecer os sistemas, policial, judicial e prisional, por dentro. Não gosto de escrever baseado em livros. Gosto de conhecer a realidade. Para escrever sobre Portugal, por exemplo, recuso-me a ler Eduardo Lourenço, Fernando ou José Gil, ou Saramago, prefiro ir para as ruas falar com as pessoas. Do mesmo modo para conhecer a Justiça é preciso passar por um tribunal.

    Quando escrevi no post que qualquer um pode ser preso não estou a exagerar. Com a crescente criminalização de todos actos humanos, a linha entre o dentro e fora, é muito ténue. Os que mandam na sociedade tomaram consciência desse problema e tentam alternativas como pulseiras electrónicas, trabalho comunitário, multas para evitar construir tantas prisões quanto igrejas por esse país fora.

     
  • At 2:54 da tarde, Blogger GPC said…

    Nada de esquecer ou obliterar. Pelo contrário, muito pelo contrário. De acordo.
    É apenas uma questão de tempo e lugar. Como uma cicatriz de que nos orgulhamos mas que só gostamos de mostra à mulher que está na nossa cama ou algo assim. Pois não é natural guardar os nossos tesouros para pessoas e situações especiais? Exibimos a peça mais preciosa da nossa coleção a qualquer um?
    E não se trata de discordar ou achar mal o contrário: é apenas uma "tendência natural" minha. Um fruto da minha imbecil timidez, provavelmente.
    Não interessa nada.

    Um dos meus medos actuais (eu tenho muito medos que combato mas ainda não venço) vem precisamente de saber que, sem mais, posso ir parar às mãos do nosso sistema judiciário. Por exemplo, por ter um blogue, como o da Covilhã.
    Essa possibilidade, que actualmente apercebo como quase arbitrária, revolta-me e o imaginário do que será estar submetido aos brutos (mais por falta de valores do que por ignorância) dos nossos polícias desperta-me anarquias.
    Sei que não é assim; é um medo que vem por extrapolação da evidente verdade "O juiz não é um deus que distribui Justiça - muitas vezes é um simples idiota."
    E quem diz um juiz...

    Como muito bem diz "a crescente criminalização de todos os actos humanos"; é um facto. A mim desespera-me e assusta-me a mansidão com que os povos acatam tranquilamente isto. É para mim um verdadeiro mistério. Olho com nostalgia para os remotos tempos feudais em que havia a normalidade da submissão pela força; dou comigo a pensar no conforto de viver em metódicas ditaduras com a satisfação da camaradagem e as alegrias da transgressão consciente e intencional.

    Devo dizer que não concordo plenamente com a ideia de que para conhecer é preciso fazer; quer dizer, em termos gerais; fifty-fifty: vê-se melhor como é a Terra de longe e nunca nos apercebemos de quem é uma pessoa realmente se estivermos apaixonados por ela, por exemplo.
    A experiência é a cereja no cimo do bolo, o toque final, o espreitar o planeta que já se "viu" sentado à secretária. Se apenas se espreitar a luzeca, pouco se tira. Metade das coisas deste mundo pouco ou nada valem, por si só, sem se ter ideia do que implicam ou da sua história. Mas apresentam-se grandiosos aos olhos da mente. (É por me ter ensinado isso que eu gosto de Stephen Jay Gould.)

     

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