Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

terça-feira, setembro 25, 2007

Como na farmácia

Quem nos viu como os arrabaldeiros da Europa não nos reconhece. Enroupados de sofisticada Victoria’s Secret, no corpo e no espírito, amostramos requinte e design. O descalçado povo do xaile e da camisa quadriculada, lamentador e choramingas, foi tumulado ad perpectuam. Desemboca na liça internacional um sempre-em-pé que não conhece derrotas. O “toma” do zé-povinho, de Rafael Bordalo Pinheiro, já não vem acompanhado do manguito, mas sim de vitorioso “V”. Estamos no paraíso da Phoebe Cates! Dantes fugiam de nós como se fossemos o Stinky, hoje, achegam-se-nos como se a Gisele Bündchen, a Alessandra Ambrósio, a Sasha Pivovarova ou um íman dos brinquedos Mattel made in China, fossemos. Um português é um viramexe, primicério naquilo que faz, coruscante no que produz, firme e hirto no que consome. Ao torresmo e ao tintol ajuntou-lhes os bens culturais. Burilaram-se os gostos. “A perna? A asa? O peito? / Muito superior, sobretudo em direito / Canónico. Uma asinha, Eminência? Talvez / A possa amaciar, regando-a com xerez. / A ave é rija demais para velhinhos doentes…” (o cardeal de Montmorency, servindo o faisão ao cardeal Gonzaga, em “A ceia dos cardeais”, de Júlio Dantas). Faisão na barriguinha. Xerez no fígado. Música qualificada nos ouvidos. Desde que seja dentro, ou no jardim, do Centro Cultural de Belém, consome-se “Toccata and Fugue in D Minor” de Johann Sebastian Bach – tocada pelo vulcão do violino, Vanessa Mae.

O CCB é o chão sagrado para consumo de bens culturais porque aí a ASAE garante a qualidade. E os inspectores fazem regulares rusgas para verificar os frigoríficos e as arcas congeladoras. Não querem incorrer no risco de intoxicar os cândidos espectadores por consumirem “Faster, Pussycat! Kill! Kill!” em vez de modern art. (“Faster, Pussycat! Kill! Kill!”, de 1965, realizado por Russ Meyer, com Tura Satana, Haji e Lori Williams é um dos melhores filmes de sempre por mostrar “aquilo que o meu povo gosta” – sexo e violência gratuitos. Uma aventura de raparigas sem regras e punhos de ferro que se transformou numa influência marcante na “cultura pop”. Quentin Tarantino presta-lhe homenagem no seu contributo para a experiência grindhouse, o filme “Death Proof”. Nele Jordan Ladd usa uma t-shirt com Tura Satana. Noutro filme, “Hard Core Logo”, de 1996, do canadiano Bruce McDonald, sobre o trajecto de uma banda punk nos dias do caos e do sem futuro, o cáustico nome “Faster, Leonard Cohen! Die! Die!” surge numa lista de bandas punk). E quando se fala de punk rock é difícil bater “New Rose” dos The Damned.

Ou, então, que apareça no CCB o “Anémic Cinéma”, de Marcel Duchamp do período dadaísta. (“Cinema Anémico” foi feito por Duchamp, com a massa do primeiro pagamento da sua herança, no estúdio de Man Ray, com a ajuda de Marc Allégret. As palavras no filme são de Rrose Sélavay. Um pseudónimo de Duchamp, vestido de gaja, e que lido em francês tem um som parecido a “Eros c’est la vie”). O crítico do American Art News foi aquele que melhor compreendeu o dadaísmo e escreveu: “a filosofia Dada é a coisa mais doentia, mais paralisante e mais destrutiva, alguma vez saída do cérebro humano”. A América por ser um país anti “ismo” em technicolor é Dada. Os cidadãos são Dada. (Por exemplo, a cidadã modelo Monica Lewinsky afirmou: “votei republicano este ano; os democratas deixaram-me um sabor amargo na boca”). E o actual presidente americano
é o supremo sacerdote Dada. A Europa, com os seus amargos de boca também, tenta salvar-se por Dada. Para isso a Comissão Europeia pretende delinear uma política cultural para a Europa. Se o Estado promove a Cultura e obtém artesanato e folclore. Um supra-estado obterá agentes culturais e tachos e muitos polícias para verificar. Vence Dada. Ou será Gagá? (Diz-se que Dada é um composto das palavras “da” “da”, em romeno, “sim” “sim”. Ou, atendendo à atitude dos dadaístas, perante os sagrados cânones da produção de arte, “sim, abelha, já te atendo”. Outros dizem que Tristan Tzara tirou o nome ao acaso do dicionário francês, onde “dada” é uma palavra do vocabulário infantil, e significa “cavalinho de madeira”). Possivelmente a ASAE aprovaria Natalie Dessay, no CCB, com “Ah! non credea mirarti” de Vincenzo Bellini.

O foguetório pelo nosso súbito enriquecimento, cultural e outro, foi nuclear. Do país do “nada dá certo” (em sotaque brasileiro) saltamos para o “aqui não há derrotas”. Quem sempre esteve atado num terrível nó siamês humano, hoje dança mais ligeiro que um nietzschiano. Somos tão bons que em Portugal o Cigarette-Boy funciona. (Cigarette-Boy é um livro, de Darick Chamberlin, hipoteticamente escrito por uma máquina com ordens para funcionar como uma máquina. Termina com “now start: [start…]::”. Pelo meio há uma história de guerra sobre engenharia genética, manipulação do tempo e batalhas de naves espaciais. É uma espécie de “On the road” na linguagem dos computadores. Quase impossível de traduzir e de ler. Mas com esta descrição de tempo: “they are the golder niner key men: but that is certainly no easy to reach: a year… two years… one drop of sweat… two drops of blood: no one knows”; ou esta forma de recreação da época em que decorre a acção: “meanwhile a rocotroubadour sang old songs to captain sterling and his men like “the raggedy cadets” and “never trust a soldier” and “dump virgin”; ou esta espectacular descrição de personagens: “everyone who knew the fossil fourth master knew the flower girl: blue begonia girl: antoinette code girl: lunar 5 sufficient “save” girl: [baroque fleck socialist apricode bee perfume coral girl]”). Na engrenagem das máquinas humanas, os velhos Kraftwerk nunca enferrujam, com “The Robots”.

A esperança realizada deu-nos a alegria e a desenvoltura da Desiree esquadrinhando os seus biquínis. O padre e o sacristão vestem-se nas melhores lojas de “Roma” de Fellini. Por cá não veremos a “polícia da moda” nas ruas mesmo que os homens vistam casacos cor-de-rosa. Sentimo-nos como a criança na loja de doces ou como Cynisca quando ganhou os jogos olímpicos. (Cynisca, um princesa espartana, consta na História como a primeira mulher a ganhar os jogos olímpicos antigos. Apesar destes serem exclusivos dos homens, Cynisca vinha de Esparta, tinha uma educação para o desporto e venceu a corrida de quadrigas em 396 AC e em 392 AC). Seremos o único povo capaz de ouvir a melhor anedota do mundo sem morrer a rir de tanta barrigada levamos no Parlamento e na bicha das Finanças. E o Gilberto “ saberemos assumir a responsabilidade dos nossos actos” Madaíl também ajuda. De facto, conseguimos esta invejável posição com muito esforço. “À pata, aias, à pata”, diria D. Leonor, mulher de D. João II. (Segundo conta a lenda, em viagem para Leiria, D. Leonor teria passado pelas Caldas onde viu o povo banhando-se em cálidas águas. Disseram-lhe que eram boas para curar doenças. Ela experimentou a banhoca e seguiu viagem. Mais à frente uma ferida que tinha no braço desapareceu. Ordenou que a comitiva regressasse e mandou construir um hospital na zona. Meteram-se a caminho outra vez mas as bestas estavam cansadas, então, manda todos apear, gritando: “à pata, aias, à pata”). Ficámos tão bonitos por dentro e por fora que, “I’m too Sexy for My Shirt”, como dizem os Right Said Fred.

Não foi bem à pata que engrandecemos. Foi antes com bons especialistas em Relações Públicas. A prestação da Selecção Nacional de Rugby no Campeonato Mundial de França foi pela primeira vez grandiosa. No jogo contra a Nova Zelândia colocaram a fasquia alta como se espera de um povo ganhador. Não queriam ser derrotados por mais de 100 pontos. Infelizmente, os All Blacks marcaram 108 e Portugal ficou-se com 13 pontos. Mas como dizia São Jerónimo, “a força do diabo está nos seus rins”, e… num golpe de rins não aconteceu derrota. Foram eles que melhor cantaram o hino e fizeram outras coisas de maravilhar. Hoje não há hipótese de perdermos a maré, nem para o Inferno, como na época de Gil Vicente. (No Auto da Barca do Inferno, o diabo: “Entra! Põe aqui o pé!”. O parvo: “Houlá! Nom tombe o zambuco!”. O diabo: “Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!”). No desporto e na política as vitórias pulam para a rede. Certo dia, o ministro da Justiça, Alberto Costa, estava arrebatado: “nós queremos que a Europa fale a uma só voz contra a pena de morte, queremos que ela emita hoje uma mensagem forte, que seja audível nos outros continentes. Por isso, vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para obter essa mensagem forte”. E fez. A Polónia bateu o pé e a “mensagem forte” engasgou-se. O ministro cai em pé. Diz que foi “um episódio” numa displicente atitude igual à raposa da fábula de La Fontaine. Neste clima eufórico o fantástico vídeo de “Kapital” do grupo bielorusso Lyapis Trubetskoy poderia ter ser feito em Portugal.

É mais que certo que Portugal, se ouvir as palavras sábias de Napoleão Bonaparte, “uma constituição deve ser curta e obscura”, dará ao mundo e à Europa também… uma Constituição. Vamos açambarcar foguetes para a festa. Festarola antiga do balão e do salto sobre a fogueira. O passado cinzento coloriu-se. Temos de tudo como na farmácia. Cultura, civilização, capacidade para pôr a coisas a funcionar. Não é preciso mexer mais na equipa. Eis um eco do passado, quando água e ideologia eram puras, que não ouviremos mais, por termos enterrado a necessidade de mudanças, Natalie Cardone, cantando "Hasta Siempre”.

12 Comments:

  • At 12:34 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    É cada vez mais difícil cantar a glória de Portugal. Por isso, aproveitei para abusar dos links. Espero ter acertado nalgum que não conheçam. (Não me refiro à Ana Cristina. Que é um espanto e sabe tudo). Peço desculpa ao Armando por não traduzir o inglês mas não fazia sentido em português.

    Para compensar meto o hino dos All Blacks em francês. É uma Haka, uma canção tradicional maori, usada pela equipa de râguebi.

    Ka mate Ka mate
    Je meurs, je meurs

    Ka ora Ka ora
    Je suis vivant, je suis vivant

    Ka mate Ka mate
    Je meurs, je meurs

    Ka ora Ka ora
    Je suis vivant, je suis vivant

    Tenei Te Tangata Puhuruhuru
    C'est l'homme chevelu

    Nana i tiki mai whakawhiti te ra
    Qui a fait briller le soleil à nouveau pour moi

    Ah Upane Upane
    Un pas vers le haut, puis un autre

    Upane Kaupane
    Un pas vers le haut, un autre

    Whiti te ra
    Le Soleil brille !

    Meto também a tradução da canção Kapital, é pena a imagem YouTube. Este é um trabalho fantástico de animação realizado por Aleksey Terekhov. Lyapis Trubetskoy é um grupo bielorusso satírico da cultura pop, e da música que termina no Karaoke, que por sua vez se estava a tornar num grupo de Karaoke, mas no último álbum voltaram aos velhos tempos e mantêm o cunho anti-capitalista.

    I eat gold bricks for lunch,
    and for dessert diamonds with cream of crude.

    My name is Beelzebub, the master of the stratosphere,
    I am unbelievably cool and commonly respected.

    refrain:
    In my left hand a Snickers, in my right hand a Mars.
    My PR manager is Karl Marx.

    Capital! Capital! Capital! Capital!

    My face is Madonna, all filled with rotten pears.
    All kneel! The orchestra play a flourish!

    Capital! Capital! Capital! Capital!

    I eat cities and drink the seas.
    My beard obscures the sky:
    thunder and lightning, fog and rain.
    Ministers and chiefs, they lick my boots.

     
  • At 1:07 da tarde, Blogger Armando Rocheteau said…

    Uma delícia esta tua escalpelização da alma lusa.
    Não te preocupes com traduções. O meu inglês, embora fraco, Vai dando para perceber.

     
  • At 3:03 da tarde, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    Vou-me embora pra Pasárgada
    Lá sou amigo do rei
    Lá tenho a mulher que eu quero
    Na cama que escolherei
    Vou-me embora pra Pasárgada
    Vou-me embora pra Pasárgada

    Aqui eu não sou feliz
    Lá a existência é uma aventura
    De tal modo inconseqüente
    Que Joana a Louca de Espanha
    Rainha e falsa demente
    Vem a ser contraparente
    Da nora que eu nunca tive

    E como farei ginástica
    Andarei de bicicleta
    Montarei em burro brabo
    Subirei no pau-de-sebo
    Tomarei banhos de mar!
    E quando estiver cansado
    Deito na beira do rio
    Mando chamar a mãe-d'água.
    Pra me contar histórias
    Que no tempo de eu menino
    Rosa vinha me contar
    Vou-me embora pra Pasárgada

    Em Pasárgada tem tudo
    É outra civilização
    Tem um processo seguro
    De impedir a concepção
    Tem telefone automático
    Tem alcalóide à vontade
    Tem prostitutas bonitas
    Para gente namorar

    E quando eu estiver mais triste
    Mas triste de não ter jeito
    Quando de noite me der
    Vontade de me matar
    Lá sou amigo do rei
    Terei a mulher que eu quero
    Na cama que escolherei
    Vou-me embora pra Pasárgada.
    manuel bandeira

     
  • At 3:49 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Ir para o Irão nos tempos que correm não é boa ideia. O nosso Portugal tem tudo e muito mais. Não o troco por nada. Até tem treinador de futebol. E uma bela basílica, em Fátima, feita com o dinheiro dos passarinhos. E computadores for everybody ao preço da carcaça. E mui mais cousas que seriam necessários cem camõeses para descrever.

     
  • At 12:41 da manhã, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    Pasárgada é onde um homem quiser.
    PS: só agora li o seu próprio comentário (embora haja muitas marias na terra, suponho que a Ana Cristina seja eu; se me enganar mea culpa). Ocorreu-me que há elogios assassinos.

     
  • At 5:16 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Pasárgada na minha enciclopédia fica no Irão. (Tenho que escrever no próximo post sobre Ahmadinejad. Aquela viagem sem a minha tia pelo USA é reveladora). Ora, se o Natal é “quando” um homem quiser, Pasárgada pode ficar “onde” um homem quiser, falta o “como” um homem quiser. É estranho que com mais alguns advérbios se compõe, não uma página da vida, mas um romance policial.

    Acertou na Ana Cristina. Se há comentários assassinos, não sei, suponho que sim, tudo mata, mesmo um bando de testemunhas de Jeová. Os meus comentários são sempre feitos com consideração e admiração.

     
  • At 10:22 da manhã, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    «cada um pensa como pode»
    mário quintana

     
  • At 11:29 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Segundo Heidegger não aprendemos ainda a pensar e a nossa função é situarmo-nos na "atmosfera" do pensar.

     
  • At 12:07 da tarde, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    A metafísica é um ramo da literatura fantástica
    Jorge Luis Borges

     
  • At 1:57 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    "E agora estou perdido?
    Devo parar?
    - Não, se páras, estás perdido".
    Goethe

    A metafísica é apenas um acaso resultante da ordenação (na estante) dos livros de Aristóteles.

     
  • At 2:08 da manhã, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    essa da estante arrumou-me. ainda me estou a rir

     
  • At 4:21 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    É uma das explicações para tão inusitado nome. O tipo que ordenou tematicamente a obra de Aristóteles – ética, física, lógica etc. – deparou-se com uns escritos estranhos que não conseguia encaixar nos temas clássicos. Então colocou-os a seguir à física. Como ficou para além da física chamavam-lhe... metafísica (como sabe é o significado etimológico da palavra).

    Mais physical encontrei estas boas notícias para ter o computador ligado contribuindo para as alterações climáticas and so on:

    O blogue, intitulado "Uma conversa mundial", proporá as reflexões do chefe da diplomacia britânica mas também as do secretário de Estado para os Assuntos Europeus, Jim Murphy. Será acessível no sítio do Ministério (www.fco.gov.uk)

    Já o "Dipnote" do Departamento de Estado promete falar francamente sem a carga da linguagem diplomática e convida o público a discutir as questões quentes do mundo de hoje.
    Para a inauguração do blogue, a questão colocada para abrir o debate era:"Quem deve ser autorizado a possuir a arma atómica?".
    O endereço do blogue do Departamento de Estado é: http://blogs.state.gov

    O blog americano entra logo a matar. Com um tema tão querido da administração e do povo - atomic bomb. Buy a shelter. You are going to die.

    O Governo inglês é mais Hyde Park speaker's corner. Falem, enquanto falam não incomodam ninguém.

    Mais realista, e como o Estado precisa de saber dos seus cidadãos (não é só a Angela Merkel), serão mais dois sítios para nos meter spyware no computador.

     

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