Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

domingo, outubro 29, 2006

Ui! Que medo


Desde primevos tempos que o medo é a arma usada pelas classes dominantes para manterem poder e mordomias. Exércitos e polícias são eficientes em tempos conturbados quando não há pão e é necessário impor a razão. São a face repressiva visível (e sentida no corpo) do Poder. Para os subversivos ou recalcitrantes da ordem envia-se a baioneta e o cassetete, a paz desce sobre as cabeças partidas, e a sociedade volta ao seu normal funcionamento. Com o passar do tempo as sublevações ou revoluções mais importantes adquirem direito a fornecer motivos de souvenirs para turista (porta-chaves, t-shirts, canecas) e outra memorabilia que as pessoas gostam de coleccionar (a pistola de Trotsky, o paralelepípedo de Cohn-Bendit, o cravo de Otelo). Os belos ideais começam com uma afronta ao poder estabelecido, levam um tratamento da cavalaria ligeira, e acabam nas prateleiras do free shop no aeroporto.

O Cristianismo deu, pelo menos, duas importantes inovações à Humanidade no âmbito da ciência de controlo das pessoas. A primeira foi a ideia de Pecado, conceito que não existia nas religiões pagãs, e a necessidade de existir alguém mandatado para o absolver, estabelecendo o poder absoluto do padre sobre o cidadão comum. A outra foi manipular o medo para dominar as pessoas.

Quando Átila varria a Europa a ferro e fogo, aos cristãos restavam apenas duas opções: escravatura ou morte. A defesa do território estava a cargo do Império Romano. O general romano Flavius Aetius, com a ajuda dos Visigodos de Teodorico, conseguira travar a primeira invasão huna, para os lados da actual Paris (batalha de Chalons), derrotando Átila. Na segunda invasão o Império Romano já não existia. A cidade de Roma era um monte de ruínas e ratos. O imperador mudara-se para Ravena anos antes. Os desentendimentos e a corrupção cresciam entre as classes altas. E Aetius não conseguiu reunir um exército para enfrentar mais esta ameaça. Entra em cena o Papa Leão I que faz um brilharete ao negociar com Átila a interrupção das pilhagens em troca de uns cofres de ouro. O guerreiro huno aceitou, o Inverno estava à porta, e deslocar exércitos na Europa de antanho por caminhos de lama era impraticável. De regresso aos campos da Hungria, Átila casa com Ildico e morre na noite de núpcias. A terceira invasão nunca se deu. O Papa Leão I, que na época nem era a figura mais importante da Igreja, passa a ser visto como o salvador do Ocidente e estabelece definitivamente o poder papal de Roma sobre a cristandade, derrotando a concorrência e… dando início à Idade das Trevas (ou Idade Média).

Com o poder dos Papas surge o primeiro medo – as feiticeiras e bruxos. Incentivava-se a perseguir e a queimar tudo o que parecesse estranho à visão cristã do mundo. O medo da fogueira manterá a normalidade social no Ocidente. Os anos passam em velocidade de cruzeiro quando, a revolução francesa, o iluminismo alemão, as filosofias materialistas e a interpretação científica do mundo pela britânica Royal Society, reduzem o poder que a religião tinha como cimento social. Foi preciso criar um novo medo para unir as pessoas e de Leste surge outra ameaça, aquela que prometia acabar com as desigualdades sociais (mais tarde saber-se-á que sem desigualdades não há riquezas nem ricos). “Um novo espectro paira sobre a Europa – o espectro do comunismo” – escrevia Marx na abertura do “Manifesto do Partido Comunista”. Desta vez sob a batuta da potência emergente das duas guerras mundiais – os Estados Unidos – o Ocidente tinha o seu inimigo – os comunistas. Durante anos justificou alianças entre líderes e orçamentos, dinamizou a economia, ocupou os serviços de segurança e armamento, e o medo levava as pessoas às urnas (pois os regimes tinham mudado para Democracia onde é suposto existir liberdade de escolha).

A queda do muro de Berlim vem acabar com este estado de graça. Volta tudo à estaca zero. Sem medo as pessoas não reclamam nem respeitam a Autoridade. Esta tem que ser desejada. O velho truque do Cristianismo da coação interior estava a esboroar-se. Identificou-se outro flagelo e um novo inimigo – os traficantes de droga. Durante pouco tempo serviram de papão do Ocidente. E deu trabalho aos serviços secretos em risco de desemprego por falência do medo comunista.

O medo criado por esta ameaça estava a dar bons resultados quando a droga (a heroína principalmente) começou a atingir os filhos dos ricos. Mas não era aquele medo que fizesse as pessoas exigirem linchamentos. (Só não queriam ver indivíduos esqueléticos e seringas nas ruas). Para o Estado democrático era premente alimentar um medo mais absoluto – eis que surgem os terroristas. Os líderes andam satisfeitíssimos, as pessoas embaladas pedem mão pesada para tudo. Pena de morte é pouco. O Direito, as liberdades individuais, os direitos humanos, o direito à privacidade, são patranhas que ninguém deseja. O Estado finalmente gere o medo ideal, aquele que permite fazer tudo e ainda por cima com o aplauso geral. O gosto pelo “sangue” (no sentido literal e metafórico) sempre foi uma particularidade bem enraizada na alma popular. (Para quem se lembra da História, nos tempos da guilhotina as pessoas disputavam os lugares perto do cadafalso durante as execuções para serem salpicadas de sangue).

Entretanto, as desgraças que vão sucedendo um pouco por todo o lado, primeiro são das pessoas, depois são dos políticos que se passeiam em pomposas cerimónias com coroas de flores, marchas militares (ou paramilitares) e toda a parafernália do Estado moderno (observe-se o que vai suceder com as datas de 11 de Setembro nos Estados Unidos e 11 de Março em Espanha).

2 Comments:

Enviar um comentário

<< Home