Uma aventura… na Justiça
É uma pena aquelas duas escritoras de livros juvenis, (que não imitam a Enid Blyton), nunca terem sido presas para poderem escrever, em linguagem ligeira e telegráfica, as emocionantes aventuras de um cidadão nos meandros da Justiça portuguesa. Adolescentes e jovens adultos poderiam deliciar-se com mirabolantes peripécias em ambiente de suspense, mas final previsível, como requerem este tipo de livros educativos do carácter e formação de personalidade.
Em regra tudo começa com uma denúncia anónima sobre uma actividade ilícita perpetrada no trabalho, no prédio ou no bairro. Um cidadão incomodado com o corrupio de drogados ou invejoso com rápida fortuna do vizinho alerta as forças da ordem. Chegada a queixa, a Polícia inicia as diligências. Horas de escutas telefónicas e controle dos movimentos do fajardo para verificar se a sua conduta comporta algum acto criminoso. Depois, recolhe-se as provas e manda-se para um juiz. Caso fechado.
Mas a maioria das vezes a coisa é um pouco mais complicada. Uma grande percentagem das denúncias é sobre casos associados com o tráfico ou consumo de droga. As pessoas aborrecidas com a visão inestética de drogados no seu prédio, (ou bairro), instam a Polícia a actuar. Esta identifica o foco de perturbação. A casa e o nome do proprietário para que o juiz assine o respectivo mandado de busca. (É um pró-forma para dar emprego aos magistrados. Não consta que algum seja recusado). Na esquadra estuda-se ao pormenor a operação de captura do transgressor. Através de mapas da zona dispõe-se os operacionais de forma a evitar fugas ou sumiço de provas através das janelas. Resta ao núcleo duro de entrar na casa do suspeito e proceder à recolha de indícios da prática de crime. Por uma questão de sorte poderão encontrar uma quantidade de droga que dê para condenar. Outras vezes é preciso recorrer ao engenho e colocar a droga no apartamento do malfeitor. Vai dar tudo ao mesmo pois a palavra de um elemento das forças da ordem não pode ser desmentida em tribunal. E o juiz não tem a capacidade de ler através da acusação que está perante uma tramóia. Nem lhe interessa.
Depois de entrarem de rompante na casa do suspeito de arma em punho, durante a rusga encontram a substância ilegal (saída do bolso do agente mais esperto do grupo). Mas não basta. Há que recolher outros indícios. Provas de que criminoso se dedicava ao tráfico e comércio do estupefaciente. Escolhe-se meia dúzia de objectos. Umas caixas de ferramentas, uns fios de ouro ou prata, pequenos electrodomésticos, umas canetas Parker, o que seja fácil de transportar (algumas vezes introduz-se inadvertidamente no bolso do revistador aquele canivete de colecção, ou um fio mais trabalhado, ou mesmo notas do banco de Portugal, se houver abundância). Anos de experiência ditam quais são os objectos mais relevantes que fazem disparar o sentido de justiça no juiz. Trata-se apenas de compor um processo, porque, em tribunal não há forma de provar que não foram comprados com lucros ilícitos. Nem a parte acusatória necessitará de o provar. Parte-se do princípio de que são. Só quem nunca entrou num tribunal português é que acredita que o ónus da prova corresponde a quem acusa.
Uma rusga é uma selecção de objectos, segundo um procedimento policial, que obedece a uma lógica simples: escolher os passíveis de incriminar e excluir os outros todos mesmo que sejam mais significativos. Se o indivíduo tem mil números da Fátima Missionária não interessará, mas um exemplar da Hustler revela eventualmente um carácter perverso. Um televisor novo constitui prova de desafogo económico, mas os outros electrodomésticos, a caírem de velhos não são recolhidos, por manifesto desinteresse para o caso. Uma soqueira esquecida no fundo de uma gaveta mostra um instinto violento, mas um crucifixo na parede é uma bugiganga sem significado etc. etc.
Compete ao Ministério Público alinhavar um texto coerente dentro do jargão jurídico para ser apreciado em tribunal sob a forma de uma acusação. Trata-se de expor num discurso lógico, apesar de ficcionado, a versão dos factos, segundo a Polícia, sustentada pelas provas recolhidas. Aqui entra em acção a polissemia da língua portuguesa. Os canivetes são armas brancas, uma pressão de ar é uma pistola de ar comprimido, uns fios de ouro são X gramas de ouro, umas velhas notas estrangeiras, mesmo fora circulação, é indicador de tráfico internacional que muito impressiona o tribunal, três gramas de heroína são 160 doses, etc. Regra geral, para um réu sem posses económicas ou um julgamento arredado dos Meios de Comunicação Social, a acusação chega e sobra para condenar. (Aquela azáfama de homens togados que tanto dinheiro leva ao erário público seria desnecessária). A sentença é apenas uma confirmação da acusação. O trabalho do juiz limita-se a estabelecer a pena a cumprir. A fraca preparação dos licenciados em Direito para a especificidade das realidades culturais que vão julgar reduz o seu papel a questões de ordem meramente técnica.
O excesso de férias, e sobretudo excesso de descanso, fizeram acumular muitos anos de trabalho em atraso, que levaram a uma santificada modorra que se vive nos tribunais dos nossos dias. A tal ponto que servem apenas para assegurar o vencimento no fim do mês para aqueles que lá trabalham. Cumprem horário como bons funcionários públicos. E, ipso facto, ocupam o tempo na coscuvilhice, e o “diz que disse” tornou-se na principal prova em tribunal, assim se explica que no caso Casa Pia se percam semanas a ouvir uma senhora idosa relatar, não o que ela sabia por experiência directa pois pertencia à instituição, mas o que outros lhe contaram como se tivesse acabado de chegar de Marte.
Melhorar o funcionamento dos tribunais carece da contratação de uma empresa de gestão de recursos humanos especialista em “human performance improvement” para racionalizar o trabalho e, sobretudo, ensinar a trabalhar. Um grave problema é existirem juízes a mais, e a magistratura não ser uma profissão, mas um estatuto social. Reduzir as férias não resolve nada, apenas acabarão aqueles diálogos de aeroporto de que vamos ter sentidas saudades.
- Então meritíssimo? Por cá? – pergunta gentilmente a hospedeira de terra.
- O trabalho assim o exige. Vou para Cancún debruçar-me sobre estes processos mais complexos – responde o magistrado.
Ou subindo um pouco mais na hierarquia magistrática.
- O venerando desembargador traz um bronzeado invejável – repara o comissário de bordo.
- Nem queira saber a canseira. Passei dois meses na piscina do Sheraton Krabi, na Tailândia, a redigir estes acórdãos atrasados – explica o juiz sobraçando volumosos dossiers.
É uma pena aquelas duas escritoras de livros juvenis, (que não imitam a Enid Blyton), nunca terem sido presas para poderem escrever, em linguagem ligeira e telegráfica, as emocionantes aventuras de um cidadão nos meandros da Justiça portuguesa. Adolescentes e jovens adultos poderiam deliciar-se com mirabolantes peripécias em ambiente de suspense, mas final previsível, como requerem este tipo de livros educativos do carácter e formação de personalidade.
Em regra tudo começa com uma denúncia anónima sobre uma actividade ilícita perpetrada no trabalho, no prédio ou no bairro. Um cidadão incomodado com o corrupio de drogados ou invejoso com rápida fortuna do vizinho alerta as forças da ordem. Chegada a queixa, a Polícia inicia as diligências. Horas de escutas telefónicas e controle dos movimentos do fajardo para verificar se a sua conduta comporta algum acto criminoso. Depois, recolhe-se as provas e manda-se para um juiz. Caso fechado.
Mas a maioria das vezes a coisa é um pouco mais complicada. Uma grande percentagem das denúncias é sobre casos associados com o tráfico ou consumo de droga. As pessoas aborrecidas com a visão inestética de drogados no seu prédio, (ou bairro), instam a Polícia a actuar. Esta identifica o foco de perturbação. A casa e o nome do proprietário para que o juiz assine o respectivo mandado de busca. (É um pró-forma para dar emprego aos magistrados. Não consta que algum seja recusado). Na esquadra estuda-se ao pormenor a operação de captura do transgressor. Através de mapas da zona dispõe-se os operacionais de forma a evitar fugas ou sumiço de provas através das janelas. Resta ao núcleo duro de entrar na casa do suspeito e proceder à recolha de indícios da prática de crime. Por uma questão de sorte poderão encontrar uma quantidade de droga que dê para condenar. Outras vezes é preciso recorrer ao engenho e colocar a droga no apartamento do malfeitor. Vai dar tudo ao mesmo pois a palavra de um elemento das forças da ordem não pode ser desmentida em tribunal. E o juiz não tem a capacidade de ler através da acusação que está perante uma tramóia. Nem lhe interessa.
Depois de entrarem de rompante na casa do suspeito de arma em punho, durante a rusga encontram a substância ilegal (saída do bolso do agente mais esperto do grupo). Mas não basta. Há que recolher outros indícios. Provas de que criminoso se dedicava ao tráfico e comércio do estupefaciente. Escolhe-se meia dúzia de objectos. Umas caixas de ferramentas, uns fios de ouro ou prata, pequenos electrodomésticos, umas canetas Parker, o que seja fácil de transportar (algumas vezes introduz-se inadvertidamente no bolso do revistador aquele canivete de colecção, ou um fio mais trabalhado, ou mesmo notas do banco de Portugal, se houver abundância). Anos de experiência ditam quais são os objectos mais relevantes que fazem disparar o sentido de justiça no juiz. Trata-se apenas de compor um processo, porque, em tribunal não há forma de provar que não foram comprados com lucros ilícitos. Nem a parte acusatória necessitará de o provar. Parte-se do princípio de que são. Só quem nunca entrou num tribunal português é que acredita que o ónus da prova corresponde a quem acusa.
Uma rusga é uma selecção de objectos, segundo um procedimento policial, que obedece a uma lógica simples: escolher os passíveis de incriminar e excluir os outros todos mesmo que sejam mais significativos. Se o indivíduo tem mil números da Fátima Missionária não interessará, mas um exemplar da Hustler revela eventualmente um carácter perverso. Um televisor novo constitui prova de desafogo económico, mas os outros electrodomésticos, a caírem de velhos não são recolhidos, por manifesto desinteresse para o caso. Uma soqueira esquecida no fundo de uma gaveta mostra um instinto violento, mas um crucifixo na parede é uma bugiganga sem significado etc. etc.
Compete ao Ministério Público alinhavar um texto coerente dentro do jargão jurídico para ser apreciado em tribunal sob a forma de uma acusação. Trata-se de expor num discurso lógico, apesar de ficcionado, a versão dos factos, segundo a Polícia, sustentada pelas provas recolhidas. Aqui entra em acção a polissemia da língua portuguesa. Os canivetes são armas brancas, uma pressão de ar é uma pistola de ar comprimido, uns fios de ouro são X gramas de ouro, umas velhas notas estrangeiras, mesmo fora circulação, é indicador de tráfico internacional que muito impressiona o tribunal, três gramas de heroína são 160 doses, etc. Regra geral, para um réu sem posses económicas ou um julgamento arredado dos Meios de Comunicação Social, a acusação chega e sobra para condenar. (Aquela azáfama de homens togados que tanto dinheiro leva ao erário público seria desnecessária). A sentença é apenas uma confirmação da acusação. O trabalho do juiz limita-se a estabelecer a pena a cumprir. A fraca preparação dos licenciados em Direito para a especificidade das realidades culturais que vão julgar reduz o seu papel a questões de ordem meramente técnica.
O excesso de férias, e sobretudo excesso de descanso, fizeram acumular muitos anos de trabalho em atraso, que levaram a uma santificada modorra que se vive nos tribunais dos nossos dias. A tal ponto que servem apenas para assegurar o vencimento no fim do mês para aqueles que lá trabalham. Cumprem horário como bons funcionários públicos. E, ipso facto, ocupam o tempo na coscuvilhice, e o “diz que disse” tornou-se na principal prova em tribunal, assim se explica que no caso Casa Pia se percam semanas a ouvir uma senhora idosa relatar, não o que ela sabia por experiência directa pois pertencia à instituição, mas o que outros lhe contaram como se tivesse acabado de chegar de Marte.
Melhorar o funcionamento dos tribunais carece da contratação de uma empresa de gestão de recursos humanos especialista em “human performance improvement” para racionalizar o trabalho e, sobretudo, ensinar a trabalhar. Um grave problema é existirem juízes a mais, e a magistratura não ser uma profissão, mas um estatuto social. Reduzir as férias não resolve nada, apenas acabarão aqueles diálogos de aeroporto de que vamos ter sentidas saudades.
- Então meritíssimo? Por cá? – pergunta gentilmente a hospedeira de terra.
- O trabalho assim o exige. Vou para Cancún debruçar-me sobre estes processos mais complexos – responde o magistrado.
Ou subindo um pouco mais na hierarquia magistrática.
- O venerando desembargador traz um bronzeado invejável – repara o comissário de bordo.
- Nem queira saber a canseira. Passei dois meses na piscina do Sheraton Krabi, na Tailândia, a redigir estes acórdãos atrasados – explica o juiz sobraçando volumosos dossiers.
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