Becas e lecas
Existe uma zona de estudo, dentro das Ciências Humanas, pouco desenvolvida mas de extrema importância para compreender a nossa sociedade e a nossa posição dentro dela – chama-se “proxémia”e estuda o espaço e a disposição dos objectos (desde uma cadeira a um edifício) que nele fazemos. Podemos colocar a sua origem no antropólogo Franz Boas, o primeiro a sugerir que haveria uma relação entre linguagem e Cultura (e que as sociedades eram um todo autónomo com várias possibilidades de evolução). Mais tarde, o médico e linguista amador Benjamin Lee Whorf baseando-se nas teorias de Edward Sapir, de que o “mundo real” é em larga medida construído a partir do código linguístico dos diferentes grupos sociais, vai desenvolver a ideia de que cada língua contribui com uma parte importante na estruturação do mundo perceptivo dos que falam.
A nossa percepção do mundo exterior não é apenas uma representação automática, feita através dos órgãos dos sentidos, mas um trabalho de reconstrução executado pelo cérebro a partir de conceitos fornecidos pela língua-mãe. Ou seja, nós não vemos através dos órgãos dos sentidos, o cérebro é que vê, e a forma como vemos o mundo que nos cerca depende do meio cultural onde estamos inseridos. Ou de outra forma, um português, um inglês ou um japonês por terem uma língua materna diferente estruturaram a Cultura de forma distinta, e por isso não têm a mesma noção de espaço e consequente percepção do mundo. (Esta disparidade é mais perceptível nas línguas mais distantes de nós. Os japoneses têm o conceito “ma” que se pode traduzir por “espaço intercalar”. O espaço entre as coisas que nós nem reparamos. Na arte, Cézanne, Monet, Matisse, Degas, Sisley tentaram representá-lo pintando a luz. Fora disso fixamos os objectos e não os espaços entre eles).
O espaço não é um meio físico autónomo no qual nós estamos inseridos mas uma criação cultural – esta é a tese principal da proxémia. Se nas sociedades ocidentais o espaço foi estruturado a partir da vista, no mundo árabe foram o olfacto e gosto que procederam a essa estruturação. Por exemplo, os árabes ao falarem mantêm-se dentro da zona de cheiro do seu interlocutor, por isso, Saddam insistia nos vários banhos diários como sinal de civilidade do seu povo. Desta diferença cultural resulta ser quase impossível os americanos (ou ocidentais, herdeiros da filosofia grega) compreenderem os árabes. São dois sistemas culturais assentes em órgãos dos sentidos diferentes.
(Na nossa definição de “eu” incluímos o exterior do corpo, a roupa e uma bolha à volta que varia entre os 45 cm e 75 cm. Se um desconhecido invadir este espaço consideramos uma ameaça contra a nossa “pessoa”. Para os árabes o “eu” reside no interior e não pode ser tocado fisicamente através do exterior. Mas sim ideologicamente, por aquilo que eles consideram heresias, como as célebres caricaturas de Maomé. Talvez assim se explique a pouca importância que dão ao corpo que pode ser invadido, mutilado, torturado, que de facto não define a “pessoa”, como na nossa Cultura).
Todos conhecemos o baixo nível intelectual e técnico dos nossos juízes e advogados, e que os tribunais mais parecem uma casa de comédia do que um local de trabalho. As becas são mais lecas para programas infantis com marionetas. Mas são um exemplo concreto de como esta análise proxémica é um facto. De que o espaço não é um lugar puro e inocente que se apresenta aos nossos sentidos, mas uma criação nossa, feita com base nos pressupostos gramaticais e lógico-formais da Cultura onde nascemos, e que nos são dados a partir do momento que aprendemos a língua materna.
Se observarmos a disposição na sala de um tribunal dos vários operadores judiciais constatamos que o colectivo de juízes e o Ministério Público se colocam ao fundo da sala em lugar central, os advogados ocupam os lados, e de frente para os juízes ficam os réus. Esta disposição espacial não é produto do acaso, ou da necessidade de atafulhar pessoas numa sala escassa, nela estão expressas as relações de força e poder na sociedade portuguesa no que diz respeito à aplicação da Justiça. O facto dos juízes e o Ministério Público estarem dentro da sala juntos, em cima de um estrado, ao mesmo nível, significa que são a mesma coisa. Não há diferença entre eles, (apesar de em teoria os juízes serem os “avaliadores imparciais” e o Ministério Público o “acusador”), na prática são formados nas mesmas instituições, convivem nas mesmas salas, têm uma vida social conjunta, discutem as penas a aplicar a priori, e o espectáculo que se realiza na sala de tribunal é pois um pró-forma para justificar o vencimento.
Se repararmos num tribunal americano a única figura em destaque na sala é o juiz que está em posição mais elevada. Os advogados de defesa e o Ministério Público estão de frente para o juiz, ao mesmo nível no espaço, significando que têm por missão expor os seus argumentos em pé de igualdade, um defendendo o outro acusando. E o réu está junto do seu advogado revelando que existe uma ligação entre eles. Ora nos tribunais portugueses nada disto se passa pois o advogado de defesa é mais uma exigência da lei que uma figura activa.
Num tribunal português as provas da defesa são sempre secundárias e, a maior parte das vezes, nem chegam a ser avaliadas pelo pretenso “operador judicial imparcial”. O depoimento de um polícia, tem muito mais valor, do que aquele prestado pelo vizinho, a santa mãezinha ou o padre da paróquia, se apresentados pelo réu, por exemplo. Todo o poder está na prova da acusação e muitas vezes o juiz não tem a capacidade, nem o discernimento, para ver que tudo aquilo é uma boa montagem literária, mas que nada tem a ver com o universo jurídico, que deveria lidar com provas concretas e factos provados, e não com especulações filosóficas da procura da Verdade. A Verdade é uma questão para filósofos e não para juízes e advogados. Estes deviam preocupar-se apenas com o que pode ser demonstrado.
O que se passa nos tribunais portugueses é um problema cultural porque ninguém consegue viver fora da sociedade onde nasceu. Nas condições actuais defender-se num tribunal luso é uma pura perda de tempo e dinheiro. Vale e Azevedo aprendeu esta lição quando saiu do tribunal da Boa Hora, com sete anos e meio de cadeia para cumprir, e chateado porque a prova apresentada pelo seu advogado de defesa não foi considerada. E os arguidos do Processo Casa Pia, quando falam em apresentar trezentas testemunhas de defesa, vão ter uma surpresa.
Existe uma zona de estudo, dentro das Ciências Humanas, pouco desenvolvida mas de extrema importância para compreender a nossa sociedade e a nossa posição dentro dela – chama-se “proxémia”e estuda o espaço e a disposição dos objectos (desde uma cadeira a um edifício) que nele fazemos. Podemos colocar a sua origem no antropólogo Franz Boas, o primeiro a sugerir que haveria uma relação entre linguagem e Cultura (e que as sociedades eram um todo autónomo com várias possibilidades de evolução). Mais tarde, o médico e linguista amador Benjamin Lee Whorf baseando-se nas teorias de Edward Sapir, de que o “mundo real” é em larga medida construído a partir do código linguístico dos diferentes grupos sociais, vai desenvolver a ideia de que cada língua contribui com uma parte importante na estruturação do mundo perceptivo dos que falam.
A nossa percepção do mundo exterior não é apenas uma representação automática, feita através dos órgãos dos sentidos, mas um trabalho de reconstrução executado pelo cérebro a partir de conceitos fornecidos pela língua-mãe. Ou seja, nós não vemos através dos órgãos dos sentidos, o cérebro é que vê, e a forma como vemos o mundo que nos cerca depende do meio cultural onde estamos inseridos. Ou de outra forma, um português, um inglês ou um japonês por terem uma língua materna diferente estruturaram a Cultura de forma distinta, e por isso não têm a mesma noção de espaço e consequente percepção do mundo. (Esta disparidade é mais perceptível nas línguas mais distantes de nós. Os japoneses têm o conceito “ma” que se pode traduzir por “espaço intercalar”. O espaço entre as coisas que nós nem reparamos. Na arte, Cézanne, Monet, Matisse, Degas, Sisley tentaram representá-lo pintando a luz. Fora disso fixamos os objectos e não os espaços entre eles).
O espaço não é um meio físico autónomo no qual nós estamos inseridos mas uma criação cultural – esta é a tese principal da proxémia. Se nas sociedades ocidentais o espaço foi estruturado a partir da vista, no mundo árabe foram o olfacto e gosto que procederam a essa estruturação. Por exemplo, os árabes ao falarem mantêm-se dentro da zona de cheiro do seu interlocutor, por isso, Saddam insistia nos vários banhos diários como sinal de civilidade do seu povo. Desta diferença cultural resulta ser quase impossível os americanos (ou ocidentais, herdeiros da filosofia grega) compreenderem os árabes. São dois sistemas culturais assentes em órgãos dos sentidos diferentes.
(Na nossa definição de “eu” incluímos o exterior do corpo, a roupa e uma bolha à volta que varia entre os 45 cm e 75 cm. Se um desconhecido invadir este espaço consideramos uma ameaça contra a nossa “pessoa”. Para os árabes o “eu” reside no interior e não pode ser tocado fisicamente através do exterior. Mas sim ideologicamente, por aquilo que eles consideram heresias, como as célebres caricaturas de Maomé. Talvez assim se explique a pouca importância que dão ao corpo que pode ser invadido, mutilado, torturado, que de facto não define a “pessoa”, como na nossa Cultura).
Todos conhecemos o baixo nível intelectual e técnico dos nossos juízes e advogados, e que os tribunais mais parecem uma casa de comédia do que um local de trabalho. As becas são mais lecas para programas infantis com marionetas. Mas são um exemplo concreto de como esta análise proxémica é um facto. De que o espaço não é um lugar puro e inocente que se apresenta aos nossos sentidos, mas uma criação nossa, feita com base nos pressupostos gramaticais e lógico-formais da Cultura onde nascemos, e que nos são dados a partir do momento que aprendemos a língua materna.
Se observarmos a disposição na sala de um tribunal dos vários operadores judiciais constatamos que o colectivo de juízes e o Ministério Público se colocam ao fundo da sala em lugar central, os advogados ocupam os lados, e de frente para os juízes ficam os réus. Esta disposição espacial não é produto do acaso, ou da necessidade de atafulhar pessoas numa sala escassa, nela estão expressas as relações de força e poder na sociedade portuguesa no que diz respeito à aplicação da Justiça. O facto dos juízes e o Ministério Público estarem dentro da sala juntos, em cima de um estrado, ao mesmo nível, significa que são a mesma coisa. Não há diferença entre eles, (apesar de em teoria os juízes serem os “avaliadores imparciais” e o Ministério Público o “acusador”), na prática são formados nas mesmas instituições, convivem nas mesmas salas, têm uma vida social conjunta, discutem as penas a aplicar a priori, e o espectáculo que se realiza na sala de tribunal é pois um pró-forma para justificar o vencimento.
Se repararmos num tribunal americano a única figura em destaque na sala é o juiz que está em posição mais elevada. Os advogados de defesa e o Ministério Público estão de frente para o juiz, ao mesmo nível no espaço, significando que têm por missão expor os seus argumentos em pé de igualdade, um defendendo o outro acusando. E o réu está junto do seu advogado revelando que existe uma ligação entre eles. Ora nos tribunais portugueses nada disto se passa pois o advogado de defesa é mais uma exigência da lei que uma figura activa.
Num tribunal português as provas da defesa são sempre secundárias e, a maior parte das vezes, nem chegam a ser avaliadas pelo pretenso “operador judicial imparcial”. O depoimento de um polícia, tem muito mais valor, do que aquele prestado pelo vizinho, a santa mãezinha ou o padre da paróquia, se apresentados pelo réu, por exemplo. Todo o poder está na prova da acusação e muitas vezes o juiz não tem a capacidade, nem o discernimento, para ver que tudo aquilo é uma boa montagem literária, mas que nada tem a ver com o universo jurídico, que deveria lidar com provas concretas e factos provados, e não com especulações filosóficas da procura da Verdade. A Verdade é uma questão para filósofos e não para juízes e advogados. Estes deviam preocupar-se apenas com o que pode ser demonstrado.
O que se passa nos tribunais portugueses é um problema cultural porque ninguém consegue viver fora da sociedade onde nasceu. Nas condições actuais defender-se num tribunal luso é uma pura perda de tempo e dinheiro. Vale e Azevedo aprendeu esta lição quando saiu do tribunal da Boa Hora, com sete anos e meio de cadeia para cumprir, e chateado porque a prova apresentada pelo seu advogado de defesa não foi considerada. E os arguidos do Processo Casa Pia, quando falam em apresentar trezentas testemunhas de defesa, vão ter uma surpresa.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home