Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, novembro 18, 2006

A geração “Portugal, Portugal”

Em 2004 vivemos o melhor tempo da nossa História, – bateu o também áureo período da chegada do Mário Soares de França e os subsídios de Bruxelas –, foi o ano do nosso contentamento e sobreaquecimento da alma lusa. Conduzidos por um novo Sá da Bandeira, no presente cenário o Scolarão da Selecção, não partimos para o planalto de Angola mas para o tecto do mundo. Estava um calor de assar caracóis ao ar livre. Incêndios acendiam-se por dá cá aquela palha. Fora decretada a retoma, formosa palavra, injustamente esquecida do vocabulário actual, que segura nos levava à fonte dos cântaros inteiros. Patrocinado por todas as marcas de cerveja Portugal deu mais um pulinho qualitativo.

Inebriados pela bandeira, o cachecol e o boné uma nova geração de lusitanos nasceu com o “Portugal, Portugal” na boca. Que gritam em todas e nas mais estranhas situações – nos concertos musicais pop ou “gulbenkianos”, nos engarrafamentos de trânsito, nas casas de fado, nas partidas de dominó e bisca lambida no Jardim da Estrela, durante a missa antes da hóstia, nas bichas à porta da FNAC para comprar o último Harry Potter ou nas inspecções para a tropa. Ouvimos este jucundo grito de guerra “Portugal, Portugal”.

Nesta nova ficção nacional Portugal passou de província espanhola, de buraco negro na Europa, de pardieiro onde um lugar no aparelho de Estado significava fortuna para si e para a família, a nação de valorosos e reconhecidos méritos, a exportar cientistas, investigadores, trabalhadores qualificados para as obras, padres, empresários e políticos de craveira para os quatro cantos do mundo, limpando aquela imagem de saloio enganado por todos, que Pedro Álvares Cabral deixara na Índia.

Depois de duas gerações para esquecer, – a “rasca” e a “dah” –, eis que surge no quadro idílico da retoma uma geração que, apesar do valor das propinas e nivelamento por baixo em todo o meio escolar, vai levar a nação ao esquadrão da frente no concerto das nações, que, talvez os americanos nos deixem viajar sem visto e distribuam de borla medalhas de ouro do Congresso aos nossos governantes – aquele garçon bem parecido que se enfiava entre o Wbush e o Aznar nos Açores, depois arrimadiço na Comissão Europeia, e… o sorriso novo do nosso ex-Ministro da Defesa e (da água) do Mar refulgente nas reuniões da NATO, mereciam mais distinção, para além do reconhecimento de familiares e amigos.

Com esta nova geração o universo está ordenado. Tal como nas antigas publicidades, tipo “um preto loiro e um branco de carapinha”, assim, também, colocar gravuras gregas num teatro do Porto não é normal. O normal é cada um no seu lugar. Em Portugal, gravuras portuguesas, de preferência de Foz Côa, sempre são mais decentes que uns helénicos de pudendas partes ao léu. Os novos lusos assumiram que a tendência para o disparate, que tanto atormenta professores e académicos, intelectuais e comentadores, não está no facto de existir um milhão de analfabetos, mas nos nove milhões que acreditam que sabem ler. Escudados no betão armado do saber transformam voláteis opiniões em verdades de vida ou morte – ou “mata mata”, na novíssima “foot-speak”.

Agora, entre a arejada classe política deste reino da tolice só há “aves de bom agoiro” e “novos do Restelo”, que preconizam o futuro brilhante e dão o exemplo. Os carros de alta cilindrada, o motorista fardado, os perfumes almiscarados, as roupas caras, as loiras pintadas, os restaurantes de luxo são estilo de vida moderna, tão necessários à boa eficiência e à rentabilidade no trabalho como as batatas e alho no bacalhau. Se queremos políticos que produzam temos que lhes dar condições. (700 euros como subsídio de alojamento aos deputados residentes fora de Lisboa é um pouco mais que o prometido ordenado mínimo ambicioso mas não chega a dois).

Uma nova mitologia se desenha no céu pátrio. As velhas Nossas Senhoras de tudo e mais alguma coisa que, tanto colorido davam à vida intelectual e cultural das cidades e aldeolas do país, têm um sério adversário no santo do Caravaggio. Este santo, que já foi visto na TV e ouvido na rádio por milhões, é reportado como grande milagreiro em encher estádios e a vender cerveja, que se houver coragem para ultrapassar o erro de D. Afonso Henriques ao dedicar estas terras a Maria, estamos prontos para um novo capítulo na História. Por sorte o novo infante descobridor, Madaílão de seu mui nobre nome, as dedicou a Scolarão. E, agora, esperamos tremedoiros que este as dedique ao santo do Caravaggio para hagiográfica rotatividade no paraíso terreno que nos espera.

A geração “Portugal, Portugal” acha-se bonita porque acredita na publicidade e na indústria do parecer para vender. Um pouco de gel Shock Waves da Wella transforma qualquer rapaz com problemas de pele num Cristianão Ronaldão. Estes novos portugueses atingiram o sentido do ritmo, batem palmas a compasso sempre que ouvem música, seja Mozart ou Marco Paulo, mostrando o seu ecletismo musical e cultura democrática como mandam as regras do sexto Império (onde já não é o mar que une mas a patetice). Todos passam por um casting como um ritual natural de passagem da adolescência para a idade adulta de uma sociedade laica, fértil em oportunidades, sem os nervos, choros e rezas a Nossa Sr.ª de Fátima da geração anterior. São crentes mas isso é outro departamento, não misturam as águas, o padre e o bispo continuam sendo os mestres-de-cerimónias dos acontecimentos da vida e os substitutos da figura paternal que desapareceu das famílias com a chegada do super-heróis da Marvel ao cinema. Os heróis da terra substituíram os heróis do mar, nacionalismo não falta nesta geração, amam a bandeira com pagodes em vez dos tradicionais castelos, cantam hinos de mão no coração em vez do Hino. São capazes de aguentar a má organização intrínseca das produtoras de espectáculos, em qualquer tipo de evento, sempre com o optimismo de que estão a cumprir um desígnio pátrio.

Temos sorte de viver em tempos tão gloriosos em que a quilha do barco português volta a sulcar as águas espalhando lusa idiotice pelo mundo como nos bons velhos tempos.

3 Comments:

  • At 7:39 da tarde, Blogger Armando Rocheteau said…

    Venho cá à procura de textos inteligentes e irónicos. Não tenho razões para desilusões.
    Vou rapinar este texto.
    Abraço

     
  • At 10:55 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    mais uma vez ....brilhante!

     
  • At 6:21 da tarde, Blogger A Chata said…

    Como diria a nova geração:

    Prontos, viva o Scolari o homem que mudou o rumo da História!

    Texto excepcional, como sempre.

     

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