Os bons e os maus
Em 1944, na ilha de Saijan, os ventos da guerra viravam a favor da tropa do Tio Sam. Os bravos G.I. Joes avançavam para a ocupar. O exército japonês ao retirar difundia entre os civis que os americanos vinham violar e matar de forma cruel e vil. Seguiu-se uma das muitas educativas cenas do conflito que não figura nas primeiras páginas dos livros de História. Mulheres com as crianças nos braços atiravam-se dos penhascos para a morte e, dos barcos, os soldados americanos abatiam-nos no ar para evitar o sofrimento da agonia quando chegassem aos corais. Havia uma razão de peso para esta venatória carnificina. Estratégica, diz-se no sábio calão bélico. A insignificante ilhota era um objectivo militar importante. Serviria no ano seguinte de base para o ataque às ilhas centrais. Dela foi lançado o maior bombardeamento contra Tóquio em 10 Março 1945, onde morreram mais de 100 mil pessoas, para engrandecer a contabilidade dos aliados e pavimentar o caminho para a Vitória.
Esta cena de evidente cariz cinematográfico não foi retirada de um negro policial de James Elroy, ou das partes mais cruéis e estéticas do Antigo Testamento, mas dos muitos factos da vida nunca passados ao celulóide dos milhares de filmes feitos sobre a edificante rectidão das tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. E mostra que, ontem como hoje, o campo do Bem e do mal estavam bem definidos. Os bons são os que vencem. E têm direito a continuar o espectáculo nos tribunais, a julgar os maus pelos seus horrendos actos, e refazer os factos sob a forma de História (condensada nos livros). Os maus simplesmente perdem e não têm direito a nada.
Em 1942 a canção mais em voga nas ruas dos Estados Unidos não era “White Christmas” de Bing Crosby, ou “Moonlight Cocktail” de Glenn Miller, ou sequer “Don’t sit under the apple tree” das Andrews Sisters que enchiam o Hit Parade, mas sim uma cançoneta de cariz racista de Carson Robinson apropriadamente chamada “We’re going have to slap the dirty little jap (and uncle Sam’s the guy to do it)”. Ela reflecte um sentimento popular de ódio contra um povo e também o bom samaritanismo político de levar a Democracia ao Japão. Estas são, desde 1776, as duas principais características da guerra americana. Quando entraram na Segunda Guerra Mundial os soldados americanos viam os japoneses como cruéis porcos sub-humanos e gostavam de os matar para roubar os dentes de ouro rebentando-lhes a boca à coronhada. Era normal ver-se o orgulhoso soldado EUA mostrar o seu cantil cheio de dentes. Numa famosa capa, a revista Life, mostrava a noiva de um soldado olhando para o crânio de um soldado japonês, assinado a caneta de feltro, pelos amigos do noivo lá na Companhia.
Na preparação inicial da guerra é necessário transformar cidadãos pacíficos em perigosos assassinos. Regra geral, entre as classes mais baixas ou entre emigrantes que procuram a integração na sociedade de acolhimento. As actuais tropas americanas pouco têm dos descendentes dos Pilgrim Fathers que desembarcaram do Mayflower, em Plymouth, em 1620 – não raro vemos um luso descendente na guerra do Iraque. Não restam dúvidas, os americanos são os bons nesta fita e ainda por cima lutam pela Democracia e Liberdade. São valores muito importantes para toda a Humanidade, que deviam ser vendidos nas mercearias do Sr. Belmiro de Azevedo, para estarem ao alcance de todos, e serem baratos como a uva mijona. No entanto, as cenas de crueldade desenroladas nas guerras são excluídas do conhecimento público, ou quando a exposição é inevitável, são passadas como excepções e manchas no alto código de honra militar. Como sucedeu com os episódios da prisão de Abu Ghraib.
Os valores americanos de ajuda ao mundo em agonia, como às mulheres japonesas da ilha de Saijan, são uma certeza que qualquer democrata-cristão compreende, pois têm dois mil anos de tortura e morte com o credo do perdão na boca. O pior são os outros maltrapilhos que não sabem como é bom o céu e não querem seguir as aventuras apocalípticas que S. João Evangelista escreveu na ilha de Pratmos. Preferem apostar em cavalos coxos como Paz, Solidariedade, Igualdade ou, o último anátema, Comércio Justo.
Os iraquianos não sabem a sorte que têm ao poderem beber deste cálice americano. Agora, podem aparecer na CNN e nas estações do mundo livre a sangrar nas camas dos hospitais. No tempo de Saddam isso era impensável, pois, para o ditador, a liberdade de expressão era uma batata do Entroncamento. E nós ficámos a saber o nome do chefe de cada Esquadra de Polícia do país nos comunicados sobre os estragos causados pelos carros armadilhados. As vozes de mau agoiro vão dizer que saiu o Ali Bábá de Bagdad mas entraram os quarenta ladrões para roubar o petróleo. E logo depois daquele espectáculo televisivo que foi a cobertura da guerra, cheio de militares fardados com medalhas e berloques e teorias de espantar, e especialistas do meio universitário sem rei nem roque, versando sabedoria a potes. Um espectáculo melhor que qualquer Festival da Canção, mesmo aquele que o José Cid ganhou vestido de blusão verde. Ao menos para um bom programa de TV a guerra do Iraque serviu.
Matar afegãos e iraquianos, com matar japoneses em tempos idos, é coisa sem importância. Eles não sentem a dor como nós. Se nos matarem um filho, a quantidade e qualidade da nossa dor é muito superior e mais intensa que a deles. Como exemplo para quem não acredita, relembro aquele artigo de esforçados jornalistas lusos, que para alarmar a consciência dos automobilistas compararam as mortes nas estradas pátrias com o número de mortos no Iraque, e chegaram à conclusão que nas nossas vielas morrem muitos mais. Só que se esqueceram de somar os cadáveres iraquianos e por uma boa razão, tal como os japoneses, são cadáveres de somenos importância caídos em nome de superiores valores ético-políticos.
Em 1944, na ilha de Saijan, os ventos da guerra viravam a favor da tropa do Tio Sam. Os bravos G.I. Joes avançavam para a ocupar. O exército japonês ao retirar difundia entre os civis que os americanos vinham violar e matar de forma cruel e vil. Seguiu-se uma das muitas educativas cenas do conflito que não figura nas primeiras páginas dos livros de História. Mulheres com as crianças nos braços atiravam-se dos penhascos para a morte e, dos barcos, os soldados americanos abatiam-nos no ar para evitar o sofrimento da agonia quando chegassem aos corais. Havia uma razão de peso para esta venatória carnificina. Estratégica, diz-se no sábio calão bélico. A insignificante ilhota era um objectivo militar importante. Serviria no ano seguinte de base para o ataque às ilhas centrais. Dela foi lançado o maior bombardeamento contra Tóquio em 10 Março 1945, onde morreram mais de 100 mil pessoas, para engrandecer a contabilidade dos aliados e pavimentar o caminho para a Vitória.
Esta cena de evidente cariz cinematográfico não foi retirada de um negro policial de James Elroy, ou das partes mais cruéis e estéticas do Antigo Testamento, mas dos muitos factos da vida nunca passados ao celulóide dos milhares de filmes feitos sobre a edificante rectidão das tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. E mostra que, ontem como hoje, o campo do Bem e do mal estavam bem definidos. Os bons são os que vencem. E têm direito a continuar o espectáculo nos tribunais, a julgar os maus pelos seus horrendos actos, e refazer os factos sob a forma de História (condensada nos livros). Os maus simplesmente perdem e não têm direito a nada.
Em 1942 a canção mais em voga nas ruas dos Estados Unidos não era “White Christmas” de Bing Crosby, ou “Moonlight Cocktail” de Glenn Miller, ou sequer “Don’t sit under the apple tree” das Andrews Sisters que enchiam o Hit Parade, mas sim uma cançoneta de cariz racista de Carson Robinson apropriadamente chamada “We’re going have to slap the dirty little jap (and uncle Sam’s the guy to do it)”. Ela reflecte um sentimento popular de ódio contra um povo e também o bom samaritanismo político de levar a Democracia ao Japão. Estas são, desde 1776, as duas principais características da guerra americana. Quando entraram na Segunda Guerra Mundial os soldados americanos viam os japoneses como cruéis porcos sub-humanos e gostavam de os matar para roubar os dentes de ouro rebentando-lhes a boca à coronhada. Era normal ver-se o orgulhoso soldado EUA mostrar o seu cantil cheio de dentes. Numa famosa capa, a revista Life, mostrava a noiva de um soldado olhando para o crânio de um soldado japonês, assinado a caneta de feltro, pelos amigos do noivo lá na Companhia.
Na preparação inicial da guerra é necessário transformar cidadãos pacíficos em perigosos assassinos. Regra geral, entre as classes mais baixas ou entre emigrantes que procuram a integração na sociedade de acolhimento. As actuais tropas americanas pouco têm dos descendentes dos Pilgrim Fathers que desembarcaram do Mayflower, em Plymouth, em 1620 – não raro vemos um luso descendente na guerra do Iraque. Não restam dúvidas, os americanos são os bons nesta fita e ainda por cima lutam pela Democracia e Liberdade. São valores muito importantes para toda a Humanidade, que deviam ser vendidos nas mercearias do Sr. Belmiro de Azevedo, para estarem ao alcance de todos, e serem baratos como a uva mijona. No entanto, as cenas de crueldade desenroladas nas guerras são excluídas do conhecimento público, ou quando a exposição é inevitável, são passadas como excepções e manchas no alto código de honra militar. Como sucedeu com os episódios da prisão de Abu Ghraib.
Os valores americanos de ajuda ao mundo em agonia, como às mulheres japonesas da ilha de Saijan, são uma certeza que qualquer democrata-cristão compreende, pois têm dois mil anos de tortura e morte com o credo do perdão na boca. O pior são os outros maltrapilhos que não sabem como é bom o céu e não querem seguir as aventuras apocalípticas que S. João Evangelista escreveu na ilha de Pratmos. Preferem apostar em cavalos coxos como Paz, Solidariedade, Igualdade ou, o último anátema, Comércio Justo.
Os iraquianos não sabem a sorte que têm ao poderem beber deste cálice americano. Agora, podem aparecer na CNN e nas estações do mundo livre a sangrar nas camas dos hospitais. No tempo de Saddam isso era impensável, pois, para o ditador, a liberdade de expressão era uma batata do Entroncamento. E nós ficámos a saber o nome do chefe de cada Esquadra de Polícia do país nos comunicados sobre os estragos causados pelos carros armadilhados. As vozes de mau agoiro vão dizer que saiu o Ali Bábá de Bagdad mas entraram os quarenta ladrões para roubar o petróleo. E logo depois daquele espectáculo televisivo que foi a cobertura da guerra, cheio de militares fardados com medalhas e berloques e teorias de espantar, e especialistas do meio universitário sem rei nem roque, versando sabedoria a potes. Um espectáculo melhor que qualquer Festival da Canção, mesmo aquele que o José Cid ganhou vestido de blusão verde. Ao menos para um bom programa de TV a guerra do Iraque serviu.
Matar afegãos e iraquianos, com matar japoneses em tempos idos, é coisa sem importância. Eles não sentem a dor como nós. Se nos matarem um filho, a quantidade e qualidade da nossa dor é muito superior e mais intensa que a deles. Como exemplo para quem não acredita, relembro aquele artigo de esforçados jornalistas lusos, que para alarmar a consciência dos automobilistas compararam as mortes nas estradas pátrias com o número de mortos no Iraque, e chegaram à conclusão que nas nossas vielas morrem muitos mais. Só que se esqueceram de somar os cadáveres iraquianos e por uma boa razão, tal como os japoneses, são cadáveres de somenos importância caídos em nome de superiores valores ético-políticos.
3 Comments:
At 2:47 da tarde, Anónimo said…
Que eu saiba foram os japoneses que iniciaram as hostilidades no Extremo Oriente no âmbito da 2ª Guerra Mundial e as suas atrocidades contra os povos vizinhos não tiveram paralelo a não ser nos tempos de Tamerlão.
At 6:33 da tarde, Táxi Pluvioso said…
Tem toda a razão. Simplesmente faço notar que na Guerra as atrocidades são equivalentes. Não há “bons” nem “maus”. E apenas por uma questão de objectividade. Não sou pacifista. Até considero que a Guerra é um factor importantíssimo no progresso da Humanidade. Basta vermos que a maior parte da tecnologia é inventada, ou desenvolvida, para fins militares e só depois é utilizada em aplicações civis.
Pelo que me lembro (mas tenho de confirmar nos meus apontamentos) Tamerlão abriu as rotas comerciais através do seu território e garantia segurança mesmo para os cristãos.
At 1:43 da tarde, A Chata said…
Quem foi que começou?
(Diz o pai aos filhos em conflito)
Foi o ser humano com o seu instinto tribal (nós e os outros) e sua necessidade atávica de poder sobre a tribo.
Será defeito de fabrico?
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