Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

quarta-feira, outubro 17, 2007

Invoquem os deuses

Alá. Brahman. Deus. Júpiter. Kami. Manitú. Mulungo. Zeus. Ou Marilyn Manson. Não importa! Qualquer um deles é digno de abençoar os nossos feitos no século dos portugueses. Porque o século XXI é nosso. Ninguém nos vai roubar o louro (ou a salsa) da glória. Muitos tentaram mas daqui não levam nada. Respiramos segurança. Saltamos os pontos de interrogação que afligiam Miguel Torga. (“Canto ou não canto as tetas da donzela / Que daqui da janela / Vejo no limoeiro? / Elas são tão maduras… / E tão duras … / Têm uma cor e um cheiro… / Canto! / Nem serei o primeiro, / Nem eu sou santo”). E metemos as tetas no whisky, como solicitava da assistência, nos seus espectáculos, o incrível one man band de Tucson, Arizona, o bluesman Bob Log III, em “Boob Scotch”.

O recente desembaraço conseguido, não só nos permite assistir a Feiras de Sexo, sem corar nem risinhos nervosos, mas também a exportar florejante know-how. Ensinámos a Europa, e o mundo, a realizar torneios de futebol, baseados na nossa experiência com o Euro 2004. Por causa da melhor organização de sempre somos universalmente requisitados e vitoriados. Não se admirem de um dia ouvir Ruth Marlene na Rana FM (emissora on-line de Kandahar gerida pelos militares canadianos para afastar os afegãos de los recuerdos de Mullah Omar). Desde esse ano a taça da competência nunca mais parou de encher. E agora iremos explicar aos gregos como se extingue de vez o problema dos incêndios de Verão. Graças aos planos de coordenação entre bombeiros, Protecção Civil e divina intervenção implementados pelo ministério da Administração Interna este ano os fogos terminaram em Badajoz (para quem vem de França). Arregaçámos mangas ao trabalho para seguir Sebastião da Gama: “Levanta-te, Povo! / Ah! visses tu, nos olhos das mulheres, / a calada censura / que te reclama filhos mais robustos!”. Intelectualmente robustos, é bom de se ver. Ajaezados com processador topo de gama para todas as aplicações no mercado, foi-se a preguiça. Por cá não há “Lazy Eye” (dos Silversun Pickups) ou… outro órgão vadiote.

Os descrentes, como sempre, desvalorizarão o papel de Deus e dos senhores padres na contenção dos fogos (e noutras coisas de maravilhar como a Ydreams ou a indústria das rolhas de cortiça). Desfiarão a lengalenga do costume: que Deus é gordo; que “O Gangue das Batinas” nada fez; que as condições climatéricas excepcionais foram responsáveis; que blá blá blá… Alguns insensatos, mimetes de Bocage, vangloriar-se-ão: “Devoto incensador de mil deidades / (digo, de moças mil) num só momento, / inimigo de hipócritas e frades, / Eis Bocage em quem luz algum talento; / Saíram dele mesmo estas verdades, / Num dia em se achou cagando ao vento.” Olvidando-se que sem frades o país emparvece. E que o vento devolve o excremento se um fradinho não rezar por bom direccionamento. Em Portugal todo o lugar foi homologado para rezar. Mas o spot das beáticas ladainhas é Fátima. E não só... Fátima é o Martinho da Arcada do século XXI. O caldeirão cultural de onde sai pão intelectual. “TNT for the Brain” (dos Enigma).

No fim-de-semana passado ouvimos no santuário apelos à rebelião contra “os senhores deste tempo”. Tarcisio Bertone, espécie de… ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, incitava os fiéis a revoltarem-se, “com a mesma audácia dos apóstolos”, contra aqueles que “em nome de uma sociedade tolerante e respeitosa, impõem como único valor comum a negação de todo e qualquer valor real e permanentemente válido”. Numa palavra, Bertone estava chateado contra os guardadores de rebanho, não credenciados pelo Papa. O respeitinho pela Marca Registada é muito bonito. O Vaticano tem a patente para falar em nome dos outros desde o século V. (O poder do Papa de Roma estabeleceu-se em 452 d. C. quando, nos destroços do Império Romano, Leão I convenceu Átila, em troca de ouro, a regressar a casa, na Panónia, travando a segunda invasão huna). Por tal, não pode permitir que os senhores "da Cultura e da Arte, da Economia e da Política, da Ciência e da Informação” andem para aí a mandar fiapos do Verbo desautorizados, como se fossem donos e não meros infelizes cãezinhos. (“Ai felicidade perdida / porque a mágoa não tem fundo / o cão ladra contra a vida / nós ladramos contra o mundo” – António Lobo Antunes). E recomenda Bertone, para criar “uma sociedade nova” (bolas! outra), que se agreguem esforços do “mais insignificante, dos servos mais humildes, dos servos de um só talento”, opondo-se aos “senhores”, que não os senhores... padres. (Ele não se referia aos múltiplos talentos das raparigas do grupo rock francês Plastiscines).

Fátima é a nossa luz que não vem da Rede Eléctrica Nacional. Luz, mais brilhante que mil sóis, não sujeita a aumentos de 2,9%. Nem aos fornicoques bolsistas de um senhor que ganha cerca de 30 mil euros por mês. E que tartufo afiança, as linhas de muito alta tensão, sobre a cabeça dos pobres, “não são um risco para a saúde”. Ele próprio, rico, portanto com mais a perder se a Morte o levasse, não se importaria de morar debaixo de uma. Mas quis a sorte malvada que habitasse numa zona que não autoriza desvalorizações imobiliárias, por isso nunca se lhe acercará uma linha de muito alta tensão, e mudar-se para entre Fanhões e Trajouce, depois de acumular tremenda cangalhada, sobrecarregaria a esposa amada. Ele não está preparado para drásticas medidas como Mário Henrique Leiria: “ ‘Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe’. / Perfeitamente. / Sempre cumpri o que assinei. / Portanto estrangulei-a e fui-me embora”. Ele também é homem de palavra mas não poeta estrangulador. Conserva a esposa e, como leu em estudos científicos, a certeza da inocuidade das radiações. É um homem íntegro. Não tem espírito para ser um “ganda maluco”, trocar o luxo pela palhoça, dizer tretas da boca para fora, e gostar da música estranha das islandesas Amiina.

Os sempre em baixo reclamam da opulência da basílica da Santíssima Trindade. Barafustam pelo gasto de uns míseros 70 milhões de euros na frequente megalomania construtiva padreca. Homens de pouca carteira! O padre Borga esclarece: “o que se gasta em Deus reverte para o homem”. Através do sacrifício dos senhores padres, que burel vestiram para pagar aos arquitectos e pedreiros, Portugal tem um equipamento mais útil que a sopa do Barroso ou o Euromilhões. Agora, os dois milhões de pobres registados vão ter um vislumbre de riqueza. Terão a oportunidade única de ver ouro sem ser na montra da ourivesaria ou enfeitando as senhoras dos patrões. E ainda por cima disposto na parede como obra de arte. Extasiados pelo esplendor esquecerão eventuais agruras quotidianas no chope-chope ou na habitação. As pessoas informadas sabem que a comida, nestes tempos de obesidade, é um estorvo e que os sem-abrigo, com banda larga, têm acesso à casinha ideal em Direct Home Find. Devemos pois agraciar os senhores padres com pródigas esmolas em Fátima por nos extirparem o reles materialismo do corpo. No sagrado chão pisado pelos pastorinhos nasce o português novo. Envergonhado por desbaratar a vida em futilidades mundanas nas conversas de café descritas por Alexandre O’Neill: “Que vergonha rapazes! Nós pràqui, / caídos na cerveja ou no uísque, / a enrolar a conversa no ‘diz que’ / e a desnalgar a fêmea (‘Vist’? Viii!’)”. Após uma visita à basílica da Santíssima Trindade, arroubados pelo (bom) misticismo, nada nos pára. Nada está “Standing in the Way of Control” (The Gossip). Não há nada entre nós e o sucesso.

Por termos uma abadia com 900 lugares sentados adquirimos aquilo que os desodorizantes e pensos higiénicos prometem – confiança em nós próprios. E isso ficou patente logo no Domingo da ditosa inauguração. Vencemos a poderosa selecção do Azerbeijão. Uma máquina de jogar futebol vinda do frio que não funciona a dinheiro (três dias de salário do Cristiano Ronaldo são suficientes para pagar o ordenado mensal de todos os seus jogadores). Eles jogam por duas cantigas e meia de Sedaqet. Que gloriosa vitória! Scolari, castigado pela UEFA pelo (justo) soco, resguardou-se num camarote. E foi Nossa Senhora, deleitada pela basílica, quem interferiu nas canelas dos nossos heróis. Os senhores padres, enrascados com a carência de milagres, para levarem água benta ao seu moinho, não podem deixar os seus figos em figueira alheia, como sucedeu a Rose di Primo. (Diz-se que a pobreza, a falta de dinheiro para comprar pano, levou-a a criar o fio dental, no entanto, sendo uma invenção mais importante que a roda, o seu nome não figura junto de Edison ou Bill Gates). A basílica da santíssima Trindade é mais que um trambolho na paisagem. É também a inauguração de uma nova era que vamos agarrar com garfo e faca. “Grip Like a Vice” (The Go! Team).

Daqui para a frente serão só êxitos. No futebol, ganharemos tudo. Na política internacional, o Tratado e a cimeira UE – África frutificarão. Na família, os filhos (de banqueiros) serão perdoados. No policiamento, os polícias de caminho para a Câmara Municipal passarão pelos sindicatos. (Nem será necessário mudar a Lei da Greve. A deputada do PS, Sónia Sanfona, toca: “o que está a ser elaborado são normas técnicas, um manual de boas práticas, a propor pelas Polícias e a avaliar pelo Governo”). Os deuses devem estar sãos para nos proporcionarem tão favorável momento. Permaneceremos inebriados (no bom sentido) pelos símbolos nacionais. (“Se o verde e o tinto são / As cores da nossa bandeira, / Ai, lá se vai a nação / Se acabar a bebedeira” – Natália Correia). Neste Portugal nunca aprenderemos a chorar como canta o grupo The Rogers Sisters.

O pequeno país europeu dos 10 milhões de habitantes já sente a diferença. O Instituto de Psicologia do Algarve lançou um workshop, de um dia, que ensina a ser feliz pela insignificante quantia de 80 euros. Claro que os “bota-abaixo” dirão que feliz ficará o espertalhaço Instituto com mais umas massas nos cofres. Custa-lhes encarar a realidade. Que no plano divino para Portugal apenas consta felicidade. (Até a Floribella encontrará a mãe, que é a Teresa Guilherme, e viverão felizes para sempre). Enquanto o PC chinês procura os “amanhãs que cantam”, os nossos já cá cantam. “Ó Lusitânia que te vais à vela!” (António Nobre). Vamos, mas com motor fora de bordo, em alta rotação, que a universidade do Minho devia criar um Global Incident Map, para localizar on-line, e em tempo real, os portugueses no mundo. Um mapa deste tipo seria consultado por milhões de internautas, pois ficará na moda ter um português em todos os lares, como antigamente o era um escravo trácio. E tudo graças a uma pechincha de 70 milhões. Há o antes e depois basílica como na canção “Crazy”. Antes, cantada por Gnarls Barkley, e depois pelos músicos do futuro.

4 Comments:

  • At 5:37 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Bob Log III é um maluco que toca viola com as mãos e bateria com os pés e usa um capacete com um micro em forma de auscultador de telefone. Meti o link da Wiki para dar uma ideia do homem. Havia um vídeo melhor desta canção mas foi retirado por causa dos direitos.

    Tenho notado que alguns links foram bloqueados. Isto é revelador do jogo sujo das editoras que usam o YouTube para promoverem os seus produtos e depois fazem-se de esquisitos por causa de uma imagem (e som) de má qualidade.

    Dentro em breve tudo isto só será utilizado se o dinheiro trocar de mãos. Está-se mesmo a ver qual é o futuro. Creio que para a versão YouTube Beta já criaram o programa que fiscalizará os direitos de autor. Os gestores são pagos a peso de ouro para desencantar formas de arrecadar dinheiro. É pena não pensarem em melhorar a qualidade mas também o consumidor moderno gosta de ser roubado. Acho que a Google Inc. devia considerar os vídeo de música como publicidade e cobrá-los às editoras para que aprendam em não se armarem em vítimas.

    A estação de rádio Rana FM parece-me ser daquelas que carecem do velho transístor de botões e molas, pois estes sons estereofónicos digitais não lhe fazem jus.

     
  • At 11:26 da tarde, Blogger Jana said…

    Quem é que fica feliz por gastar 80€ num dia, para ouvir um palerma a falar o dia todo? Das duas uma...ou sofre de enxaquecas e nesse dia dorme, que nem um santo; ou então nunca ouviu falar das low cost e do 'se vai para fora, vá mesmo' a ver se mudando de ares e conhecendo novos sitios fica mais feliz!
    Finalmente tive tempo para vir conhecer o seu espaço... parabéns e um abraço
    Juliana Tomé

     
  • At 6:17 da tarde, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    Portugal tem 10 milhões de habitantes desde que entrei para a escola primária, já lá vão umas gerações. Tal acalmia reprodutiva causa-me espécie. E lembrei-me disso agora a propósito dos mistérios de Fátima e das Feiras de Sexo.

     
  • At 11:12 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Creio que no último censo ficámos perto dos 11 milhões. Recensearam todos para não falhar um (sempre importante no equilíbrio universal) portuga. Pelo menos eu fui recenseado compulsivamente. Não acredito em dar voluntariamente dados ao desbarato. Sou a favor de um método mais prático e barato – a etiqueta agrafada na orelha com as informações úteis de cidadão.

    Fátima é o nosso orgulho. É a melhor empresa portuguesa e não vende nada palpável como a Sumolis ou o calçado Guimarães. Estou curioso para conhecer os lucros deste ano. Devem atingir o céu, como não podia deixar de ser, pois lá vive Nosso Senhor, o patrão.

    Se tivéssemos tido a coragem de ser mais ousados, dentro de dias estaríamos no primeiro lugar das potências mundiais. A basílica da Santíssima Trindade é a quarta maior igreja do mundo. É pena não terem apostado no primeiro lugar. É sabido que Deus é bom pagador daqueles que lhe servem e daria o piparote para pôr este motor imóvel a funcionar.

    A embaixada americana no Iraque tem a área do Vaticano. Nós por cá também devíamos pensar big como os nossos amigos.

     

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