Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, dezembro 22, 2007

Conto de Natal

Um dia tudo aquilo que era vivido directamente transformou-se em mera
representação – berrava o sistema de surround Samsung HT-TXQ120R para Alice, exactamente no meio de uma sessão de cinema cambojano. Rapariga inquisidora, logo tratou de pôr as palavras do home cinema em pratos limpos ou, como diziam… em chávenas limpas e foi tomar chá, com o coelhinho e o chapeleiro, no País das Maravilhas. Os seus argutos anfitriões mandaram-na procurar Guy Debord. (Alice “desviada” pelos situacionistas de Chicago. Parte 1. Parte 2). Não ficou mais sábia. Mas também não ficou mais burra. Então, teve um loooongo pensamento: «se o YouTube retirou os vídeos, que denunciavam situações de tortura no Egipto, do bloguista e defensor dos direitos dos humanos, Wael Abbas, e depois reconsiderou, e reactivou-lhe a conta passada uma semana, com a condição dele fornecer “contexto suficiente” dos uploads, para que os broncos consumidores de ficheiros formato FLV compreendessem a importante mensagem, talvez eles fossem “bonzinhos” e tivessem o URL da casa de Guy Debord». Encontrou a Internationale Situationiste em três cacos, (Parte 1. Parte 2. Parte 3), antes de ir ouvir o rock psicadélico de Pen Ron num Apple iPod Shuffle 1GB.

Um fenómeno estranho sucede quando os empresários engordam uma sociedade. Alice notara que colocavam etiquetas nos objectos saídos das fábricas com as sensações que deviam provocar. Ninguém conseguia distinguir o sabor de um iogurte sem ler o rótulo. Isso era-lhe evidente. Mas Guy Debord vem acrescentar que as relações entre as pessoas são mediatizadas pelas imagens que os objectos transmitem de si. Uma vez, Alice comeu um rebuçado Ice Breakers da Hershey no cinema, e as imagens pareceram-lhe reais, como se estivesse numa cova platónica. Não era este o caso porque a sensação desapareceu ao fim da noite. E, apenas, restou a vontade de comer mais rebuçados. Debord dizia: “espectáculo é o capital acumulado a tal ponto que se torna imagem”. Portanto, nas sociedades capitalistas da abundância, as pessoas não consomem objectos, mas as representações desses objectos. Alice desembolsou um milhão de euros num Lamborghini Reventón para testar se a sua vida social se modificava. Conduzia numa auto-estrada quando ouviu no rádio, exactamente a meio de uma canção de rock 'n' roll cambojano, que Deus descera num aeroporto, causando interferências no sinal de televisão. Alice imaginou um lugar maravilhoso, onde a divindade baralha os megahertz, e é filmada numa Sony HDR-SR8E, para mais tarde recordar. E, decidiu visitar uma das suas regiões turísticas, enquanto o rádio transmitia mais rock de Rous Sareysothea.

O Reino do Bué Bué de Perto tem um monarca, o Sr. Shrek Silva, que adora enfardar bolos durante as visitas ao povo. E, como não falava com a boca cheia, delegou a governação no seu principal ministro Peter Pão. Um homem de espírito científico e alma aventureira. Valente, sem medo de moscas, ou zombies como a Cherry Darling. Peter Pão era um glorioso maluco das novas tecnologias. Não perdia uma engenhoca high tech. Neste momento implantava um regime político perfeito. Um dos grandes defeitos da Democracia é os resultados. Há sempre uma ínfima probabilidade de não serem os desejáveis. Para resolver esta anomalia, o ideal seria abolir o voto, mas os velhos da Nintendo 64 protestariam, não entendendo que os tempos são PlayStation 3. Então, brota uma ideia ainda melhor. Criar as condições para que as pessoas votem sempre no mesmo. É um autêntico Pinnacle ShowCenter 250HD. Aprova-se uma Lei dos Partidos estabelecendo um limite mínimo de militantes. Partido político com menos de 5 000 militantes perde esse estatuto e não concorre às eleições. Simplex! Peter Pão alcançou uma Democracia de “segunda geração”. Entretanto, Alice estaciona num parking da EMEL. Paga com um cartão electrónico inteligente Visa MyBank. O parquímetro, por não ter aproveitado o programa “Novas Oportunidades”, para ficar esperto, perdeu a competição com o cartão, e é obrigado a tocar pop yé-yé de Pen Rom pela ranhura.

O intendente de Peter Pão chama-se Silva Nespereira. É, no calão tecnológico, um leitor multimédia Quicktime. Numa fracção de segundo reproduz o pensamento do patrão. Tem a missão de pôr os pontos nos “is”, atilar os ditongos, dizer “iésss” em vez de “sim” e entoar numa voz folclórica – estilo Eng Nary ou Em Songserm – lengalengas até o último céptico se engasgar no paleio do primeiro crente. A frase deste dia era: “Portugal pode apresentar-se no Parlamento Europeu olhando olhos nos olhos os deputados e dizer que apresentou um programa e cumpriu os seus objectivos”. Silva Nespereira dormia num fac-símile do palácio de São Bento e, das nove às cinco, recebia os estrangeiros em trânsito. Cobrava-lhes os impostos e as multas sobre as inúmeras proibições do reino. Alice encontrou-o no jardim podando uma azinheira. Repetia a sua ladainha, contente, mas Alice achou aquela conversa do “olhos nos olhos”, uma parolice. Em cima da azinheira umas luzentes colunas brancas Bang & Olufsen transmitiam Teth Sombath. Silva Nespereira não interrompe as suas importantes funções e pergunta com maus modos: “tem a sua vida fiscal legalizada?”. Alice não percebeu, pois vivia uma vida biológica. Bebia, fumava e às vezes… Ele completa no mesmo tom: “se não tem, vá ter com o apodecta do reino, e desampare-me a azinheira”. Alice aproveita a oportunidade de verificar se as teorias de Guy Debord eram correctas e responde: “eu conduzo um Lamborghini Reventón”. O intendente larga o podão e levanta a cara com um brilhozinho nos olhos. Nas colunas toca Chea Savoeun com Sothea.

Silva Nespereira confundiu Alice com um rei mago da Oiropa. Uma agremiação de reinos com um lugar muito especial no Sony Vaio UX1 do seu patrão. Peter Pão não se cansava de afirmar, double orgulhoso, que fora a tecnologia buépertense responsável pelo derrube dos últimos vestígios da Cortina de Ferro. Em agradecimento a Oiropa mandava turistas endinheirados para alugarem salas para cimeiras de sucesso. Por coincidência, fora lançada recentemente uma campanha para promover o Reino do Bué Bué de Perto, e Silva Nespereira julgou que o marketing já estivesse a surtir efeito. Contrataram Nick Knight, um nobre fotógrafo, pago a peso de ouro, e voaram 3 milhões de euros nuns posters para espalhar pelos burgos. A ideia é substituir a Amália, o Eusébio e Fátima por Mariza, Cristiano Ronaldo e Mourinho. Adir-lhe uma artista plástica, uma arquitecta e uma cientista e, assim, atrair turistas e captar investimento. O intendente pergunta se Alice quer investir ou visitar paisagens com empregados vestidos de branco imaculado. Alice responde que prefere saber mais sobre o Deus que se intromete nos cabos de fibra óptica. Silva Nespereira elucida: «é a Nova Nossa Senhora de Fátima que nos vai salvar”. Alice é peremptória: “Deus só há um. Google e mais nenhum. Dá-nos “Animal Crackers” ou “O Couraçado Potemkine” ou “O Gabinete do Dr. Galigari”». O intendente fica fulo. Comparar um divinal treinador de sucesso com um motor de busca é trocar líderes por Web Crawlers. E as colunas Bang & Olufsen continuavam com o rock de Houy Meas.

A mudança de atitude do intendente justificava a teoria de Guy Debord. E, a insistência de Silva Nespereira, para que Alice assistisse a uma “festa popular”, provou outra ideia situacionista. Que o espectáculo exibido pela sociedade capitalista rica provoca imenso aborrecimento. Sobretudo, a produção cultural é abaixo de cão. Nas sociedades pobres têm o pop de Mao Sareth.


A abolição das fronteiras na Oiropa transferiu o policiamento para junto do cidadão. Para as ruas, para os restaurantes, para as lojas, para dentro das casas. E o polícia é vendido, não como um elemento repressivo, mas como o ombro amigo de todas as ocasiões. Para comemorar o alargamento do espaço Schengen Peter Pão organizara uma “festa popular” na Praça do Comércio. No programa consta a actuação da charanga a cavalo e dos motociclistas da GNR, bandas sinfónicas das forças de segurança e um exercício do Grupo Operacional Cinotécnico da PSP. O Reino do Bué Bué de Perto mobiliza-se para o futuro. Alice, farta de coboiadas, monta no carro. Troca o cigarro por uma palha de feno e dirige-se para o pôr-do-sol. No rádio toca o folk de So Savoeun.

5 Comments:

  • At 2:11 da tarde, Blogger Táxi Pluvioso said…

    E de decorações natalícias é a única coisa que sei fazer. Meter a imagem e o texto e, deus, na sua infinita bondade, faz do caos, ordem. Neste ano bom trabalho me deu, pois havia um enter no início, que metia o texto numa coluna mais pequena.

    Os músicos do Camboja são do período pré-Pol Pot. Como sabem, o dirigente khmer tinha aquele programa para rejuvenescer a população, e matou todos com idade para dizer “papá” e “mamã”. Quase todos estes músicos foram executados.

     
  • At 9:15 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    Esqueci-me. Não sou do movimento "Fuck Christmas". Sou do movimento "Fuck Chimneys". É isso que o Pai Natal está a fazer...

     
  • At 4:30 da tarde, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    Cisionista!

     
  • At 10:07 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    O movimento operário estiolará em milhões de fragmentos e, cada um, terá um partido, só para si. Fará parte do código EPC (Electronic Product Code) tatuado no pescoço.

    O plural de chimney é chimnies. Só depois de meter o comentário é que topei o erro.

     
  • At 10:23 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Tens de ouvir a final countdown dos Europe por um artista cambojano. Tá naquele blog WFMU's beware of the blog.

     

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