Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Caixotes de lixo normalizados

O crescimento acelerado de superfícies comerciais ameaça cobrir o país de estaminés para venda de vitais quinquilharias. Não há terreno baldio nos arredores de vilórias ou vilarejos que não esteja na mira dos empreendedores do betão armado para uso merceeiro. Mal a Câmara Municipal X modifica o PDM avançam as máquinas para abrir a cratera aonde espigará o edifício dos nossos sonhos de comprar em conta, de gastar é poupar, de só!... é tão barato que levo dois. A maior ambição da juventude labrega actual já não é a carta de chamada do tio na Suiça mas a abertura de um centro comercial no seu território. O lugar mágico para passar o dia sem fazer puto e falar ao telemóvel. O útero iluminado pela luz artificial. O Xanax diurno. O sucedâneo da pastorícia e da agricultura. Pelo andar da carruagem dentro de muito pouco tempo existirão tantos centros comerciais quantas igrejas. E dar-se-á uma mudança de paradigma na totalidade do país. Como, aliás, já sucede no “desenvolvido” litoral, onde o antigo labrosta, (regulado pelo sol e o padre), sofistica-se no gosto e na linguagem – o que o meu avô chamava “plantar batatas” eu chamo “agricultura biológica”, diz, rebuscado, o neo-cosmopolita como se tivesse frequentado um socialíssimo curso da Paula Bobone. E passa a ser controlado por técnicas de venda e controlo social.

Para longe caminham os tempos das leis da Natureza. Aquela onde a água era criada por Deus – e não produzida pelo Homem (the man, the cool guy carregado de dinheiro e anéis de ouro da cultura hip-hop americana), a quem depois os outros homens pagam com agrado os “custos de produção”. A produção (ou privatização) da água representa o último furo na inteligência das pessoas para criar o consumidor total. E seguir-se-á a urgência dos líderes actuais em tornar a “protecção do ambiente” um negócio rentável como a derradeira oportunidade para salvar o mundo. Se calhar com o fim da água natural foi-se o bento líquido com que poderíamos lavar “pilaticamente”as mãos da subida ao calvário publicitário, para formar cidadãos responsáveis, que disparou nos aparelhos de socialização verosímeis: as escolas e a televisão. Hoje todos somos chamados a participar na colocação de pensos rápidos nas feridas que o desenvolvimento desenfreado provocou no planeta. Mascarada de educação para a cidadania dão-nos as bases do relacionamento com os outros e com as coisas, segundo a perspectiva da sociedade capitalista. No fundo, aulas e anúncios, são apenas butiráceas campanhas publicitárias para facilitar a entrada do lucro no bolso do empresário (o motherfucker dos Guns ‘N’ Roses).

Ninguém contesta que a reciclagem seja vantajosa. Reutilizar objectos e matérias-primas evita consumir recursos em desperdícios inúteis. Temos o edificante exemplo daquelas imagens das lixeiras no Afeganistão onde canetas vazias, copos partidos, caixas de papelão e paus são tesouros para quem esgravata um dos locais de aproveitamento máximo dos objectos de consumo. Agora, a mensagem de separar o lixo para ajudar o ambiente deveria levar-nos a pensar quem estamos a ajudar. O ambiente? Que se está nas tintas para nós, como esteve para com os dinossáurios e as galinhas engripadas. O lixo? Que não tem definição concreta e pode ser qualquer coisa. Ou os accionistas da empresa de tratamento de resíduos? Quais bons samaritanos dizem que nos facilitam a vida em troco de um exiguíssimo lucro. O lixo é um excelente negócio, mas a sua separação numa empresa aumentaria o custo da mão-de-obra, e baixaria a sua rentabilidade, e o consequente lucro estapafúrdio que a sociedade capitalista justamente persegue. Não haveria empresário que lhe pegasse. Retrocederíamos para a época do homem do lixo em vez do moderno técnico de gestão de resíduos sólidos urbanos. E, dos envelopes pelo Natal, com desejos de boas festas, para serem retribuídos, por nós, em notas do banco de Portugal.

A reivindicação do ecoponto em ruelas e cangostas para exercício de civilidade tem tomado a população de assalto influenciada pelos filhos e spots publicitários. A produção industrial é vista como uma coisa séria (geradora de trabalho, riqueza e bem-estar social) e o consumo uma via para as portas do céu. Transformamo-nos numas mulheres da série de televisão Dallas – quando a neura atacava Pamela e Sue Ellen iam às compras. Está fora de questão educar o consumidor para um consumo consciente que recuse comprar o que de facto não necessita (lá se iam 80% dos nossos pertences). É mais fácil criar uma cidade do Noddy todos responsáveis, todos interligados, todos limpinhos. O cidadão do futuro será um caixote de lixo normalizado reprodutor do discurso oficial. Um poço de cidadania, civilidade e consciência ecológica. No entanto, não deixa de ser curioso que o lixo das gerações passadas seja considerado objectos de valor arqueológico incalculável, e o nosso, um aborrecimento responsável pelo milagre da multiplicação dos impostos.

Para não ser all work and no play como no filme “Shining” paralelamente cria-se a sociedade do embasbacado. Pedem-nos para ver coisas que nunca vimos e apresentam-nos o Nuno Rogeiro a cavalgar uma bicicleta, e nem se dão ao trabalho de lhe tirar o selim para fazer uma anedota com barbas. Ou Carolina Salgado a dançar em cima de um balcão, em Coimbra, no calor da noite, não ao som dos Anti-Nowhere League, que reflectiria escarninhos estados de espíritos de ex-namorados, mas Mickeal Carreira, numa sucosa reminiscência profissional do passado em que recreava idosos. Ou, depois de Bill Gates ter gastado 6 mil milhões para desenvolver o Windows Vista, abrirem uma dessas baiucas electrónicas da moda durante a noite para o Simão Sabrosa ser o primeiro a comprar e… nós acreditamos nisso. Mas ainda mais arremelgamos os olhos quando Marcelo Rebelo de Sousa visita todos os meses a biblioteca de Celorico de Basto e entrega 10 mil livros por ano para decorar as prateleiras, reconhecida a instituição já deu o nome do verbómano a uma sala, condicionando futuros jogadores de computador ao esforço de pronunciar cinco nomes quando marcarem os seus encontros na “sala Marcelo Rebelo de Sousa”. E, por fim, pasmemos com o pontapé dado na crise pela etérea Câmara Municipal de Lisboa ao empossar cavaleiros da real caça à multa os serviçais fiscais da EMEL. Num dia, só na avenida 5 de Outubro, cobraram 8 070 euros com 122 carros bloqueados, 15 rebocados e 49 por falta de pagamento do parquímetro.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Caindo na graçola

A paz descera sobre os verdes prados nacionais e o pachorrento povo das cinco chagas de Cristo imitava o anúncio do leite Agros. Não fazia um boi… e pastava, mastigava e engolia. Pastava, mastigava e engolia. E depois… pastava, mastigava e engolia mais um bocadinho. Pode parecer chato mas se não fosse a paparoca banhada in vino o lusitano solo não podia produzir uma grei desta qualidade. Mas eis que surge o referendo sobre o aborto e tudo muda. As cabeças levantam-se. A manada tresmalha-se. A tranquilidade desaparece. Um tempestuoso frufru agita o luso almargeal. O lugar onde, por mais voltas que a roda da fortuna dê, as Parcas puxam sempre os mesmos cordelinhos da pateguice e da zarolhice. Na verdade o país “floribellizou-se”. Está transformado numa história de gata borralheira circular, sem ir a lado algum, a marcar passo na parada, que não avança um milímetro com o passar dos episódios. Ou pior. A nossa hiper super mega ri-fixe Flor tornou-se numa marca registada, patrocinada pelo Sr. Balsemão, para vender tralha à criançada (bolos, cromos, revistas roupas, discos… e o que vier). E Portugal apenas vende videojogos do Cristianão Ronaldão pelo mundo com dinheiro para pilhas.

As campanhas pelo voto popular sempre foram um interregno na pouca racionalidade que Deus nos distribuiu quando fez os povos. (Isso… e segundo a anedota, também nos deu os alentejanos). Elas transformam o país numa gigantesca bus stop (mas sem a Marilyn Monroe) rodeada de idiotice mais fria que a neve do Montana. Numa epoché (“suspensão do juízo”) sem as preocupações de Pírron de alcançar a “tranquilidade de espírito” (ataraxia) mas para manter a cabeça oca. Numa escada só com degraus a descer. Num frasco de éter desrolhado. Numa narcolepsia perpétua induzida pelo tsé-tsé propagandístico. Em suma, as campanhas políticas, com o repetitivo puxa o cordelinho para o títere votar, ficariam bem musicadas com a canção “Like a Yoyo” cantada pela italiana Sabrina Salerno. Nesta, que doloridamente atravessámos, a fasquia foi colocada rente ao chão e os activos participantes têm feito de tudo para rastejar cada vez mais baixo. Quando os padres – e padrecas agarrados na bainha da batina – saem para o adro bombardeando a torto e direito com Ciência, deveríamos ficar desconfiados. Os papistas nunca foram conhecidos por abraçar esse campo do conhecimento humano, excepto quando o Papa está a morrer, e as sumidades médicas embarcam no avião com destino ao Vaticano, para atardar o seu encontro com o Criador.

Nunca o rezadeiro povo do xaile preto e do barrete campino teve acesso a tanto “facto científico”. Ouve-se em vozes amornadas da rádio que às dez semanas um feto pesa 14 gramas, mede 6 cm, tem olhos, nariz, lábios, impressões digitais – querendo, talvez, dizer que já pode ser registado pela Polícia, logo é um ser humano. E, para acentuar que um embrião não é uma couve-flor, continua a caliente voz, que ele abre os olhos, tem sensibilidade e reacção ao toque e já chucha no dedo. Isto é apresentado como requintado esclarecimento científico para não ficarmos a chuchar no dedo. Nesta época de caça ao voto os números mágicos das estatísticas saltam das cartolas como coelhos de confiança. Dizem que 65% das mulheres depois do aborto sofrem de stress pós-traumático, 80% de sentimento de culpa, 83 % de arrependimento, 79% de sensação de perda e 42% de depressão grave nos 4 anos seguintes. Um leque de negativos estados psicológicos confirmados com depoimentos de mulheres com a cara esborratada digitalmente. E, a estocada final, para provar que o aborto é tão bom que até os homens o farão se legalizado, desfia-se um rol de invasões bárbaras de clínicas, ocorridas noutros países depois de aprovada a lei. A Espanha passou de 16 000 abortos por ano para 85 000, a França de 135 000 para 205 000, a Inglaterra de 58 000 para 196 000 e a Dinamarca de 4 000 para 15 000. E, não satisfeitos, coroam o bolo com uma autêntica ginja científica. Que avanços recentes da Ciência demonstram que ao vigésimo dia o coração começa a bater, revelando que intelectualmente ainda não saímos do século XVI, quando este órgão batia aos pontos o cérebro em importância no conjunto da anatomia humana. A palavra de ordem “optar pelo não sabendo que bate um coração” indica uma banalidade de base – que para o português o cérebro é um órgão menor. (Interessa sim o coração para bater pela nossa selecção. No dia seguinte ao jogo amistoso Portugal – Brasil, em Londres, todos os jornais fizeram primeira página com a magnífica vitória das quinas).

Os factos para-científicos também não faltaram. É enternecedora a campanha do CDS em defesa da abelha-mestra da colmeia. Em cartazes com rechonchudos putos de aspecto alemão vaticinam que um país moderno deixa nascer os seus bebés, ou nenhuma vida é demais, porque acreditam em valores. Não obstante a generalidade da palavra “valores” o emérito Bagão Félix contribuiu para a sua quantificação. Alerta o ex-actor de cinema para não se transformar o aborto livre num problema pago pelo dinheiro de todos nós. Posição em que é corroborado pelo PNR, mas estes dizem-no de esguelha com os braços cruzados sobre o peito – julgam eles – imitando Adolf Hitler. É uma pena este amok para ser poupadinho com as finanças públicas não se estender a outras áreas. Como, por exemplo, pagar taxa de televisão para custear as domingueiras patacoadas de Marcelo Rebelo de Sousa ou financiar caças aos gambozinos (“corrupção desportiva”, “voos da CIA”, “tráfico de influências”, financiamento de partidos políticos”, “sacos azuis + amarelos = verdes”…).

Mas o argumento mais caricato vem da modernaça viúva de Sousa Franco para quem “moderno é estar ao lado da vida”. Escudada em economistas renomados defende que se deve desatar a fazer filhos para suportar os sistemas de Segurança Social do mundo livre. Ou seja, se para apoiar cinco milhões de reformados, forem necessários dez milhões de trabalhadores activos, passados uns anos serão necessários vinte milhões para sustentar os primeiros dez, e assim sucessivamente até todo o Universo (se for infinito) estar colonizado. Esta ridícula lógica da sociedade de consumo, que podemos ver materializada na concorrência entre fabricantes de máquina de barbear (adicionar sempre mais uma lâmina melhora a performance. Vão nas cinco e prometem não parar por aí), é o que mundo precisa agora para corrigir as verdades inconvenientes do andarilho Al Gore.

No reino dos tolos tudo vai bem. A padralhada do país, prenha de ciência, pode não cair em graça mas na graçola tem caído. É pena que a campanha esteja no fim. Mais uma vez o Estado cumpriu o seu papel e deu circo ao povo. Se estivesse em jogo um assunto realmente importante não pediam a opinião do eleitorado. Ninguém faz referendos para aumentar o pão, a gasolina ou a Playboy (só leio por causa da qualidade dos artigos).

sábado, fevereiro 03, 2007

O país encavacado

De uma coisa podemos estar certos, o subdesenvolvimento fica-nos tão bem, fica-nos a matar, para ser mais exacto. O atraso, como um Polo Ralph Lauren ou umas cangalhas Gucci, assenta-nos que nem uma canção da Micaela ou da Ágata (ou, para os mais intelectuais, Paco Bandeira, José Cid ou Paulo de Carvalho). Combina com os cães de loiça no quintal e as marquises de alumínio melhorando o traço de notabilizados arquitectos. Ao ver um grupo de filósofos portugueses saírem do seu barril para defenderem o não, pensei tratar-se de um desemperramento de Gaston Bachelard, encalhado numa psicanálise de trazer por casa e esquecido depois da falência da PUF (Presses Universitaires de France) e o acoitamento da metafísica no consultório de bruxos e videntes. Que uns lusos coca-bichinhos modernizaram o corte epistemológico adaptando-o à faca eléctrica ou ao Corel Paint Shop Pro. Que vinha aí mais manteiga racionalista rica em Ómega 3 para baixar o colesterol e desentupir as veias do conhecimento científico. Que, com o contributo teórico lusitano, a “filosofia do não” nunca seria “nim”. Que orgulho! e não era futebol. Qual não foi o meu espanto quando afinal percebi que vinham burrificar sobre a essência da vida. Pouco disseram mas pelos parcos argumentos devem situar a sua origem com o aparecimento da glândula pineal transmitida por Deus no momento do concúbito. Ou outra patacoada com menos fedor a Descartes, mas também datada no tempo, como a preexistência da alma no mundo inteligível de Platão. Falar-se em filósofos portugueses é tão estranho como meter azeite e vinagre no hambúrguer ou acompanhar a pizza com batatinhas a murro. Não existem estes híbridos pratos assim como filósofos portugueses. Agora… se falarmos de fardas e mulheres desonradas já estamos outra vez no real português.

O maior cronista da verdadeira condição portuguesa não foi o Aquilino Ribeiro, nem o Camilo Castelo Branco, nem o Eça de Queirós, nem sequer o Jorge de Sena. Nem pensar nas vedetas Eduardo Lourenço, José Gil ou Eduardo Prado Coelho escrevinhadores de uma realidade de papelão. Quem melhor compreendeu esta caixa de rapé arrecadada no bolso de trás da Europa foi José Vilhena. Alguns dos seus livros podem ser repetitivos mas também o tema não é uma paleta de cores, aproxima-se mais da pescadinha com rabo na boca, do vira o disco e toca o mesmo, do ora choro eu, ora choras tu, mas todos choramos. Numa obra extensa que se podia comprar pelo correio através de selos, cheque bancário, vale postal ou notas, para não privar o leitor da sua companhia, Vilhena retratou uma realidade difícil de engolir, protagonizada por finórios, senhoras limpas pela água benta, senhores bem estabelecidos e sopeiras. “Estou desgraçada”, “Oh, sorte malvada”, “O filho da mãe”ou “O Guerra e o Paz” escurejariam “O malhadinhas”, o “Amor de perdição”, “A relíquia” ou “O reino da estupidez” se tivéssemos coragem de assumir a nossa identidade de atoleimados lapuzes que deram a volta ao mundo mas nunca saíram do mesmo sítio – as berças.

Nalguns livros de Vilhena uma das personagens centrais vinha precisamente desse fabuloso lugar, bucólico na versão poética, fervoroso na religiosidade, e distanciado do conhecimento científico dois séculos e sete anos. Uma rosada moçoila trocava a aldeola natal – que lhe destinaria uma vida na cozinha debruçada sobre as panelas, aguentado na cama as acometidas, santificadas pelo matrimónio, do bêbedo com quem fatalmente casaria, parindo de enfiada duas dúzias de filhos – por uma melhor vida como criada interna de uma família lisboeta. E, por regra, era desgraçada pelo lúbrico patrão que lhe cobiçava as carnes desde o primeiro dia, ou cederia o seu íntimo tesouro enganada pela lábia farsante do menino da casa. (Claro que o “menino” encalhara na Universidade por ser um valdevinos dedicado ao álcool e às mulheres e tinha o corpanzil de um Fernando Mendes). Mas uma coisa a fascinaria na capital – as fardas. Por isso, apesar do arranjinho sexual em casa dos patrões, deixava-se catrapiscar pelos militares que lhe arrastavam a asa. Sempre era uma hipótese de casamento e uma garantia de não terminar na má vida quando o corpo declinasse e patrão fosse à caça de frangas novas. Infelizmente, a mentalidade de sopeira e o fascínio pelas fardas é uma fulcral característica do ser português.

Na manhã do dia 25 de Abril de 1974, num self-service na rua Brancaamp, o gerente perante as notícias de movimentações militares e prevendo uma bernarda das antigas, com tiros, choro e ranger de dentes, dispensou os empregados. Por coincidência, a casa fora inaugurada no dia 25 de Abril de 1973 e para festejar um ano de existência encomendara umas flores. Para que estas não se estragassem inglórias, pediu aos empregados que as levassem do armazém. Celeste Martins sobraçou um molho de cravos vermelhos e meteu-se no metro da Rotunda. Morava no Carmo. Se havia possibilidade de traulitada era melhor refugiar-se na segurança da casinha. (Como sabemos foi o que também fez Jorge Sampaio nesse dia). Chegada à rua 1 de Dezembro deparou-se com uma coluna de tanques. Perguntou curiosa ao soldado encavalitado num deles que os trazia por tão inusitado lugar. Ele respondeu-lhe que iam ao Carmo prender o Marcello Caetano que se refugiara no quartel da GNR e cravou-lhe um cigarro. Ela não tinha. Não fumava. Mas queria agradar porque simpatizava com os tropas. Em vez do paivante deu-lhe um rubro cravo que ele colocou na espingarda. O gesto foi logo copiado pelos seus colegas a quem Celeste foi distribuindo o resto do molho. E, assim, deste lusitano gostinho por fardas, nasceu a mística da aprilina flor.

O reality show do sargento Luís Gomes, preso por se negar a entregar a filha (quase) adoptiva, continua a mostrar o grande sopeirame que somos nós e que o embevecimento pelas fardas está em alta. Quando sai do tribunal, o sargento, sempre aprumado na sua farda de gala, parece promovido a general cheio de penduricalhos ao peito por bravura em combate e benfeitorias à Nação. Homens abraçam-no comovidos. Velhas atiram-se aos seus pés histéricas contra a injustiça. As gargantas gritam-lhe vivas e apupam o pai biológico como se este fosse o progenitor do "Rosemary’s baby". Um belzebu que vem reclamar a sua semente para a enveredar pelo caminho do Mal. A imparcial imprensa portuguesa participa do arraial. Com a isenção que lhe reconhecemos relata as aventuras e desventuras da família de afecto, do pai adoptante, da mãe fugitiva e da feliz criança, mostrando que neste assunto não toma partido. O Ministério Público troca-tintas emenda a mão para dar ao povo o exigido circo e já pede o fim da espinhosa prisão. Um homem fardado está preso, urge libertá-lo, ouve-se de lés-a-lés.

A Justiça treme. No fim de contas, juízes e procuradores são homens e mulheres que adoram fardas. O curso superior não lhes lavou a sua índole sopeiral. Incapazes de aplicar a justiça salomónica porque, depois de cortada a criança ao meio, seria impossível chegar a acordo sobre quem ficava com uma parte e quem ficava com a outra, talvez seja possível aplicarem uma justiça “solnadónica”. Como naquela guerra contada com humor pelo Raul Solnado em que as balas escasseavam. Os soldados quando lá chegavam recebiam o fardamento, o fuzil e apenas uma bala. Para resolver o problema eram aconselhados pelos superiores a amarrá-la numa guita para a poderem puxar e reutilizar outra vez. Assim, atava-se uma guita na perna da criança e cada uma das personagens em liça pela sua posse podia puxar do cordel para lhe dar o seu amor. Como estamos mais evoluídos usava-se um fio de nylon para não se partir a guita e perder a criança. E têm que aproveitar agora, pois com as crianças sucede uma coisa curiosa – elas crescem. E, depois, na idade adulta, podem dar umas galhetas bem afinfadas nos pais adoptantes e biológicos e abandoná-los no corredor do hospital.

Fardas e mulheres desonradas são o nosso pudim intelectual. Um alimento rico em calorias que nos faz vibrar de energia. E, não admira que se barafuste, como carroceiros sem sebo para as rodas, com as declarações do ministro da Economia na China. Chocados com uma realidade que não queremos aceitar. Citar os baixos salários como um dos factores de competitividade em Portugal é o mesmo que soltar um boato cabeludo sobre uma figura pública numa revista cor-de-rosa (que se chamavam antigamente "revistas de sopeiras"). De facto, o ministro proferiu uma mentira lesa o bom-nome de Portugal.