Nesta época de saponária nacional e internacional, de arejamento de gavetas e armários, de polimento de pratas e pechisbeque, de espanadela dos móveis e acrílicos, de sacudidela de trapos e vintage, de renovamento económico e burocrático mentalizamo-nos que as grandes mudanças introduzidas no emagrecimento do Estado (e a ceva do empreendorismo privado) frutescerão numa terra de maná e figos maduros num futuro ignoto. As arrumadeiras do mundo, teóricas e executivas, prepararam-no para a pilhagem final dos recursos naturais e pessoais. Tony Blair, adubado por Anthony Giddens, metamorfoseou-se na prima-dona da “terceira via”, música para os ouvidos dos que sentam o dourado zinote em Davos – que agora exibem um arrebatamento ecológico, porque os que interessam estão a ficar sem as estâncias de esqui e os bares de praia. Por uma estranha conjunção de buracos negros nessa altura, na velha Europa, subiram ao poleiro Lionel Jospin, Gerhard Schröder e Massimo D’Alema para empurrarem o xaveco da economia de mercado depois do afundamento das planificações quinquenais. Nos Estados Unidos o gaiteiro casal Clinton tocava ferrinhos e saxofone. Era democracia, mercado e sociedade civil para todos. Cá no burgo o pântano político e o país de tanga atrasavam este breakfast at Tiffany’s (que pelo número de falências pessoais se transferiu para a Sotheby’s e a Christie’s). Ainda assim a nossa camisola clubístico-religiosa não nos permitia perder a esperança. O nosso tempo chegaria. O cristianismo caseiro emprenhado pelas alucinações da irmã Lúcia fez de nós acreditadores – que traduzido no universo da Alta Finança e da elevadíssima Gestão significa tansos.
A melhor palavra para caracterizar o espírito do nosso tempo é desavergonhamento. Olhamos para cima, para os carroceiros do país e não lhes vislumbramos um pingo de vergonha, vemos uns tropical gangsters bailando ao som de Kid Creole & the Coconuts, uns corsários conchavados com o capitão Blood (Errol Flynn) pilhando galeões espanhóis para os lados da Jamaica. Neste luzeiro início de século as rédeas do país, finalmente embicado para a última moda dos manuais de Economia, estão nas mãos dos padres e dos gestores. Dito de outra forma, o Altar e a Bolsa têm a nobre função de fornecer panis et circenses ao povo. Só que agora não soltam os leões e os gladiadores. Dão shows de “comédia em pé”. É um fartote de barriga cheia de riso.
Os padres arregaçaram a batina para badalarem uma salada conventual misturando terrorismo, nuclear, Saddam na corda e aborto numa lúcida consonância com o mundo contemporâneo. Afinal o Papa wears Prada, (e ouve “TV Glotzer” de Nina Hagen) e diziam que ele e os papistas viviam na Idade Média. O ex-presidente da Entidade Reguladora do Sector Energético, Jorge Vasconcelos, preparava o terreno para os espanhóis – qual secretário de Estado da duquesa de Mântua – com uns pequenos aumentos das tarifas da electricidade, demite-se amuado e confortado com 12 mil euros por mês, quando o Governo interfere no seu pesebre. O Henrique Granadeiro da PT foi à RTP perolar sobre a empresa do seu coração. O realizador fez uma transmissão repleta de close ups como se fosse Mr. DeMille, e o Granadeiro Gloria Swanson, ou quisesse assustar o Belmiro das mercearias (ou, então, percebeu que o nosso Sunset Bulevard está próximo). O Paulo Macedo dos Impostos manda rezar uma missa de acção de graças pelos Chuck Norris ao seu serviço missing in action. O António Mexia da EDP propõe aumentar a electricidade para pagar indemnizações dos mil e tal despedimentos que urge fazer para pôr aquilo a dar abacates (deduzo que sejam abacates, porque lucro não é, de certeza, pois mais lucro ultrapassa o limite do significado da palavra e entramos num outro substantivo composto – “pura-roubalheira”). Por tudo isto e muito mais repetimos com Vinicius de Morais “ Deus lhe pague”, e ficamos esclarecidos de que vivemos numa época do ladrão desempoeirado. Daquele que não espera pela ocasião. O ladrão moderno tem um curso regado de conceitos em inglês e faz a ocasião.
O cúmulo da ladroagem acoitou-se na indústria discográfica. O choradinho geral das companhias, que mais lucros auferem, contra a pirataria é de partir corações empedernidos. “Não façam cópias que estão a prejudicar os vossos queridos ídolos” diz o presidente do conselho de administração, via satélite, da sua ilha privada nas Caraíbas. “Não é justo estarem a roubar aqueles que vos proporcionam tanto prazer com a sua música”, continua, numa exulcerante lamentação como se os Blues tivessem explodido com o Jon Spencer e o Jazz com os Soft Machine. Para complementar enchem televisões e rádios com insidiosas campanhas de legalização da música passada em lugares públicos, borrando da memória a publicidade grátis que as lojas de roupa ou pizzarias fazem dos seus produtos. Quem sabe se estes não terão de recorrer ao expediente dos toques de telemóvel? Isto é, usar música clássica que já não está abrangida pelos direitos de autor e passaremos a ouvir Claude Debussy ou Camille Saint-Saëns na Zara.
A indústria discográfica vive da publicidade enganosa. Cada bicho careta quando aparece é apresentado como uma necessidade absoluta para a nossa felicidade. James Blunt, DJ Bobo, Josh Groban, Eminem, Norah Jones, Banaroo, Reamon, Nelly Furtado Dulce Pontes, Sam The Kid, Bebé Lilly, Madredeus, Docemania… até culminar no maior génio de todos – o Zé Cabra. Este é um negócio certo. O consumidor não tem onde reclamar que foi enganado. Se acordasse no meio do seu sonho consumista e compreendesse que Madonna macaqueia canções dos outros, que os Il Divo vendem sex-appeal e não música, e os U2 vendem qualquer coisa. A sua única arma seria tornar-se um consumidor esclarecido e fechar a carteira. Quando lhe pedissem 20 euros (ou mais) por um CD deveriam cantar com os Nashville Pussy “Go To Hell”.
Num ano em que são editados discos daqueles que vendem à parva, como Daniela Mercury, Andrea Bocelli, Coldplay ou Gorillaz todos enriquecem um pouco mais. Desde o gerente de armazém ao dono da companhia todos vêem a conta inchar. Segundo a revista Forbes a banda de rock geriático Rolling Stones embornalou 115 811 milhões de euros no ano de 2006. O que podemos deduzir pelos lucros gerados nesta falperrista indústria é que, por cada disco pirateado, é menos uma ilha particular, um jacto privado, um castelo na Europa que se compra. Por isso, a resposta do consumidor quando é hostilizado por partilhar ficheiros na Internet ou emprestar um disco ao amigo (que não é entendido como uma forma de se conhecer a música para eventualmente comprar se tiver o mínimo de qualidade) deve ser como o grupo punk brasileiro Olho Seco “vão levar no olho seco”.
Os verdadeiros piratas são as editoras discográficas. Cantarolaram “Flesh ‘N’ Blood” dos Oingo Boingo homenageando a extorsão que fazem aos consumidores de discos com aqueles preços obscenos. E andam de braço dado com o corsário Jack Sparrow pelos mares das Caraíbas.