Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, janeiro 27, 2007

Os piratas nas Caraíbas

Nesta época de saponária nacional e internacional, de arejamento de gavetas e armários, de polimento de pratas e pechisbeque, de espanadela dos móveis e acrílicos, de sacudidela de trapos e vintage, de renovamento económico e burocrático mentalizamo-nos que as grandes mudanças introduzidas no emagrecimento do Estado (e a ceva do empreendorismo privado) frutescerão numa terra de maná e figos maduros num futuro ignoto. As arrumadeiras do mundo, teóricas e executivas, prepararam-no para a pilhagem final dos recursos naturais e pessoais. Tony Blair, adubado por Anthony Giddens, metamorfoseou-se na prima-dona da “terceira via”, música para os ouvidos dos que sentam o dourado zinote em Davos – que agora exibem um arrebatamento ecológico, porque os que interessam estão a ficar sem as estâncias de esqui e os bares de praia. Por uma estranha conjunção de buracos negros nessa altura, na velha Europa, subiram ao poleiro Lionel Jospin, Gerhard Schröder e Massimo D’Alema para empurrarem o xaveco da economia de mercado depois do afundamento das planificações quinquenais. Nos Estados Unidos o gaiteiro casal Clinton tocava ferrinhos e saxofone. Era democracia, mercado e sociedade civil para todos. Cá no burgo o pântano político e o país de tanga atrasavam este breakfast at Tiffany’s (que pelo número de falências pessoais se transferiu para a Sotheby’s e a Christie’s). Ainda assim a nossa camisola clubístico-religiosa não nos permitia perder a esperança. O nosso tempo chegaria. O cristianismo caseiro emprenhado pelas alucinações da irmã Lúcia fez de nós acreditadores – que traduzido no universo da Alta Finança e da elevadíssima Gestão significa tansos.

A melhor palavra para caracterizar o espírito do nosso tempo é desavergonhamento. Olhamos para cima, para os carroceiros do país e não lhes vislumbramos um pingo de vergonha, vemos uns tropical gangsters bailando ao som de Kid Creole & the Coconuts, uns corsários conchavados com o capitão Blood (Errol Flynn) pilhando galeões espanhóis para os lados da Jamaica. Neste luzeiro início de século as rédeas do país, finalmente embicado para a última moda dos manuais de Economia, estão nas mãos dos padres e dos gestores. Dito de outra forma, o Altar e a Bolsa têm a nobre função de fornecer panis et circenses ao povo. Só que agora não soltam os leões e os gladiadores. Dão shows de “comédia em pé”. É um fartote de barriga cheia de riso.

Os padres arregaçaram a batina para badalarem uma salada conventual misturando terrorismo, nuclear, Saddam na corda e aborto numa lúcida consonância com o mundo contemporâneo. Afinal o Papa wears Prada, (e ouve “TV Glotzer” de Nina Hagen) e diziam que ele e os papistas viviam na Idade Média. O ex-presidente da Entidade Reguladora do Sector Energético, Jorge Vasconcelos, preparava o terreno para os espanhóis – qual secretário de Estado da duquesa de Mântua – com uns pequenos aumentos das tarifas da electricidade, demite-se amuado e confortado com 12 mil euros por mês, quando o Governo interfere no seu pesebre. O Henrique Granadeiro da PT foi à RTP perolar sobre a empresa do seu coração. O realizador fez uma transmissão repleta de close ups como se fosse Mr. DeMille, e o Granadeiro Gloria Swanson, ou quisesse assustar o Belmiro das mercearias (ou, então, percebeu que o nosso Sunset Bulevard está próximo). O Paulo Macedo dos Impostos manda rezar uma missa de acção de graças pelos Chuck Norris ao seu serviço missing in action. O António Mexia da EDP propõe aumentar a electricidade para pagar indemnizações dos mil e tal despedimentos que urge fazer para pôr aquilo a dar abacates (deduzo que sejam abacates, porque lucro não é, de certeza, pois mais lucro ultrapassa o limite do significado da palavra e entramos num outro substantivo composto – “pura-roubalheira”). Por tudo isto e muito mais repetimos com Vinicius de Morais “ Deus lhe pague”, e ficamos esclarecidos de que vivemos numa época do ladrão desempoeirado. Daquele que não espera pela ocasião. O ladrão moderno tem um curso regado de conceitos em inglês e faz a ocasião.

O cúmulo da ladroagem acoitou-se na indústria discográfica. O choradinho geral das companhias, que mais lucros auferem, contra a pirataria é de partir corações empedernidos. “Não façam cópias que estão a prejudicar os vossos queridos ídolos” diz o presidente do conselho de administração, via satélite, da sua ilha privada nas Caraíbas. “Não é justo estarem a roubar aqueles que vos proporcionam tanto prazer com a sua música”, continua, numa exulcerante lamentação como se os Blues tivessem explodido com o Jon Spencer e o Jazz com os Soft Machine. Para complementar enchem televisões e rádios com insidiosas campanhas de legalização da música passada em lugares públicos, borrando da memória a publicidade grátis que as lojas de roupa ou pizzarias fazem dos seus produtos. Quem sabe se estes não terão de recorrer ao expediente dos toques de telemóvel? Isto é, usar música clássica que já não está abrangida pelos direitos de autor e passaremos a ouvir Claude Debussy ou Camille Saint-Saëns na Zara.

A indústria discográfica vive da publicidade enganosa. Cada bicho careta quando aparece é apresentado como uma necessidade absoluta para a nossa felicidade. James Blunt, DJ Bobo, Josh Groban, Eminem, Norah Jones, Banaroo, Reamon, Nelly Furtado Dulce Pontes, Sam The Kid, Bebé Lilly, Madredeus, Docemania… até culminar no maior génio de todos – o Zé Cabra. Este é um negócio certo. O consumidor não tem onde reclamar que foi enganado. Se acordasse no meio do seu sonho consumista e compreendesse que Madonna macaqueia canções dos outros, que os Il Divo vendem sex-appeal e não música, e os U2 vendem qualquer coisa. A sua única arma seria tornar-se um consumidor esclarecido e fechar a carteira. Quando lhe pedissem 20 euros (ou mais) por um CD deveriam cantar com os Nashville Pussy “Go To Hell”.

Num ano em que são editados discos daqueles que vendem à parva, como Daniela Mercury, Andrea Bocelli, Coldplay ou Gorillaz todos enriquecem um pouco mais. Desde o gerente de armazém ao dono da companhia todos vêem a conta inchar. Segundo a revista Forbes a banda de rock geriático Rolling Stones embornalou 115 811 milhões de euros no ano de 2006. O que podemos deduzir pelos lucros gerados nesta falperrista indústria é que, por cada disco pirateado, é menos uma ilha particular, um jacto privado, um castelo na Europa que se compra. Por isso, a resposta do consumidor quando é hostilizado por partilhar ficheiros na Internet ou emprestar um disco ao amigo (que não é entendido como uma forma de se conhecer a música para eventualmente comprar se tiver o mínimo de qualidade) deve ser como o grupo punk brasileiro Olho Seco “vão levar no olho seco”.

Os verdadeiros piratas são as editoras discográficas. Cantarolaram “Flesh ‘N’ Blood” dos Oingo Boingo homenageando a extorsão que fazem aos consumidores de discos com aqueles preços obscenos. E andam de braço dado com o corsário Jack Sparrow pelos mares das Caraíbas.

domingo, janeiro 21, 2007

Vão-se os tarecos

O nosso Presidente esfalfou-se pelas terras da trindade Trimurti (Brahman, Xiva e Vixnu), saltante de hotel cinco estrelas em hotel cinco estrelas, de cidade em cidade, de bricabraque em bricabraque, de congresso em congresso. Conheceu tipos vitais para cornificar a economia do mundo numa ubérrima riqueza para todos. Cumprimentou empresários milagreiros capazes de tirar lucro das pedras. Conviveu com políticos experimentados em rentabilizar populações (o verdadeiro mafarrico de um economista ventilado das ideias é encontrar uma “população não-rentável”. Fecha o laptop e vai pregar para outra freguesia, porque os seus modelos económicos estão ao serviço do FMI, Banco Mundial e multinacionais. Onde há não lucro, não há business). O Presidente diamantizava Portugal por onde quer que passasse. A sua silhueta, olhos, mãos, cotovelos, boca diziam que existe um país sobreexcelente situado na longínqua Europa. Bom o para turismo cultural. Bem integrado na rede europeia dirigida aos viandantes atafulhados de divisas para gastar numa riquíssima oferta turística de igrejas, igrejas, igrejas, igrejas e… alguns castelos. Mas ainda melhor para o turismo das tacadas de golfe, querido dos endinheirados, os investidores poderiam vir tentar melhorar o seu handicap nos buracos portugueses. E, entrementes, criariam uns postos de trabalho.

Nesta altura do campeonato não somos esquisitos. Aceitamos todas as moedas. Não precisa ser o fiável dólar. Ariary, taka, ngultrum, kip servem, até peseta, se houvesse. Nem pedimos investimento na futurista tecnologia de ponta. Uma latoaria, uma parafusaria, uma pichelaria, um centro comercial chegam, desde que dê para picar o ponto, não somos picuinhas. Nem se discute ordenado. O alívio de voltar a ter patrão compensa ganhar apenas uns tostões no fim do mês. Depois pedimos empréstimo ao banco para comprar os objectos de primeira necessidade: televisor, Playstation, telemóvel, carro… Não se sabe se Cavaco Silva conseguiu atrair as almejadas rupias, se Portugal ficou no mapa mental indiano para férias, se não foi mais uma caça ao gambozino infraestrutural que dizem o país carecer. Só o passar de muita água debaixo da ponte o dirá.

No entanto, no seu regresso, Cavaco poderia trazer na bagagem a solução para os maus resultados na disciplina de Matemática. Quer se queira, quer não, a apetência para esta área do saber é genética. A aprendizagem ocupa um papel secundário no seu manuseamento final. (A não ser que sejam respeitados os tempos de aprendizagem dos alunos e os 12 liceais anos sejam feitos em 24. E mesmo assim não é garantido que ela não se apague da memória). Ora, é sabido que para os lados da Índia não faltam carolas em Matemática. Cavaco poderia encomendar numa empresa privada material genético congelado para lusa inseminação artificial. Desta forma nasceriam barras nos números dotando o país de uma população apta para o conhecimento científico. Seria um choque biológico para somar ao tecnológico. Claro que isto de importações é sempre um tiro no escuro. Possivelmente teriam de ser feitos ajustamentos para que tanto cientista não tornasse o país tão incompreensível como as letras dos Obituary e a consumir somente física quântica e engenharia de nanotubos. Teriam que nascer alguns patetas para verem a produção ficcional televisiva e os filmes americanos.

Temos que ter cuidado com as importações cegas. No final dos anos 70, com a democratização do ensino, a população estudantil disparou criando o problema logístico da sua acomodação. A solução provisória – definitiva com o passar dos anos – virou-se para o prefabricado, mais barato que a construção convencional, fácil de transportar e montar. O Ministério da Educação foi às compras. Nos países nórdicos encontraram mercadoria em conta pronta a embarcar. Não houve hesitações. O material veio para Portugal. Contratou-se os empreiteiros do costume para o armar nos terrenos previamente expropriados. Mestres e trolhas meteram mãos à obra na colocação dos vários módulos seguindo as instruções do fabricante. Depois de estar tudo xpto, prontinho para cumprir a sua função, notaram umas peças de loiça estranhas. Ninguém conseguia descortinar a sua função. Parecia um mictório, mas a sua colocação rente ao chão faria os catraios molharem as pernas das calças, para além disso, não havia um resguardo entre elas obrigando os putos a estarem de pirilau ao léu para os colegas. Naquela altura não havia febre “pedofilática” como hoje, não obstante, desde tempos imemoriais, urinar para o homem implica um certo recato. A procura da árvore, da soleira da porta ou do carro do vizinho. A peça de loiça intrigava os cérebros pensantes. Avançavam-se hipóteses. Seria um mictório para miúdos pequenos? Mas no secundário já são espigadotes. Um lavatório? Pouco saudável para a coluna vertebral e sem torneira. Até que se descobriu, depois de uma telefonata para a Suécia, que era o lugar onde os gaiatos escandinavos punham os esquis. Utensílios pouco usados no Laranjeiro e Miratejo na década de 70.

Mas algumas modas importadas não exigem adequação. Uma delas tem-se destacado pelas imagens fotogénicas que proporciona aos telejornais. Após “a moda do pisca pisca” da Ruth Marlene eis que chegou "a moda do arresto dos tarecos". Os solicitadores armados com o mandado judicial não param diante de portas fechadas ou placas de “cuidado como cão”. O piano do Herman, os móveis de José Veiga e Vale e Azevedo foram carregados em camiões com destino à penhora. E não se pense que só lhes interessa os serviços de prata, os plasmas Pioneer PDP 435 ou câmaras de vídeo Panasonic NV-GS400EG-S, a varinha mágica e a batedeira Singer ou o saca-rolhas também são apetecíveis. Ou que cobiçam unicamente os móveis Divani&Divani, Moviflor também marcha. Milhares de pessoas por esse Portugal adentro estão a ficar sem haveres e pertences para saldarem dívidas reais ou imaginárias. Por exemplo, muitos inquilinos ficaram sem os tarecos porque a devedora era a senhoria. Na moda do arresto dos tarecos não foi preciso adaptar a função à inteligência dos executantes. A trapalhice é a nossa imagem de marca. Que o Estado, ou contratados ao seu serviço, persistam em meter os pés pelas mãos. Com a esperteza que o povo português manifesta para dar a volta por cima das contrariedades, poucas dúvidas restam que se irá criar uma nova sabedoria popular. Dentro de tempos ouviremos dizer “vão-se os tarecos ficam-se os anéis”.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Cultura com açúcar, sal e pimenta

Entre o infindável catálogo de coisas boas que a presidência de Wbush trouxe ao mundo duas perdurarão, porque representam um pequeno passo para a Humanidade, e um grande salto para o homem. O inverso da frase que Neil Armstrong levou na ponta da língua para a lua. Na terra, a curvatura do espaço-tempo privilegia os saltos do homem, mais difíceis de executar sem as patas de um canguru ou de uma pulga. O primeiro prego espetado na nossa felicidade pelo americano “número um” foi a reabilitação para a história da música do grupo new wave The Knack. Ao trazê-lo no seu iPod, para ouvir “My Sharona” ou “Good Girls Don’t (But I Do)” durante as corridas de manutenção pelos frondosos bosques de Camp David, ou nas engraçadas tentativas para manobrar o Segway no rancho Crawford, alertou as pessoas para esta pérola da indústria discográfica americana da década de 80. A malta mais fixe dentro dos neo-conservadores de pronto viu no álbum “Get the Knack” o seu “Blonde on Blonde” (Bob Dylan). O zénite para abanar a carola e beber inspiração nas letras, num início de século dançante, mas ligeiro do ponto de vista intelectual.

A outra boa nova do perspicaz inquilino da Casa Branca situa-se na área das partidas deste mundo para o outro. Wbush, numa genial solução para facilitar esta chata transição, acabou com o “pobre diabo”. Antigamente quando um tipo, sem saber ler nem escrever, se via envolvido numa alhada que lhe era estranha e batia a bota, ia desta para melhor apenas por estar no local errado na hora errada, no dia seguinte os jornais noticiavam que “morreu um pobre diabo”. Equivalia ao azarado. Ao que fica entalado na porta automática. Aquele que leva com a cagadela de pombo no meio da multidão. Na nova terminologia para etiquetar defuntos, introduzida por Washington, foram banidos os “pobres diabos”, à nossa volta só morrem islamistas, fundamentalistas, terroristas, criminosos… Se a aviação americana rebenta com uns pastores na Somália, não eram uns pobres diabos que estavam a pastar as chibas, eram um grupo de islamitas que se preparava para um lauto banquete de cabra estofada. Se explode uma escola corânica no Paquistão, não morreram uns pobres diabos que passavam os dias a abanar a cabeça em orações, mas sim uns fundamentalistas preparando-se para estoirar o nosso bairro. Se um gajo morre moído de pancada durante um interrogatório, não foi um lamentável acidente que apagou um alegado suspeito, mas um perigoso terrorista que esticou o pernil.

Portugal habituado na simplicidade franciscana adoptou esta útil new-speak. Se um polícia mata um acelera, não juntemos mais lágrimas ao mar salgado, ele tinha cadastro, portanto, não estava a aprontar coisa boa de certeza. Ou, então, estava referenciado pelas forças de segurança como potencial candidato a iniciar, em breve, uma carreira no crime. Assim se explica que o douto Tribunal Criminal do Porto produza peculiar sentença. Condenou um guarda da PSP, acusado de ter matado um assaltante de viaturas em 2002, numa pena de 180 dias de multa, pelo crime de “negligência inconsciente”. Saltando por cima do abissal significado desta jurídica expressão, vale a pena prestar alguma atenção à multa, que é de… quatro euros/dia. Uma vida no escalão mais baixo da hierarquia social vale um pequeno-almoço jeitoso durante 180 dias, precisamente porque a nossa sociedade segregou para um pardusco limbo as vidas daqueles que, segundo os donos da opinião, não valem um caracol. E os donos da opinião são os donos de tudo o resto. Alcançamos o ponto em que de acordo com Guy Debord: “pela primeira vez, os mesmos são os senhores de tudo o que se faz e de tudo o que se diz”.

Em Portugal, o fim dos “pobres diabos” foi mais radical, ultrapassou o âmbito social no sentido estrito, para invadir a zona da cultura no sentido comercial. O deserto de almas que atravessou o país na oferta de produtos culturais para consumo imediato terminou. O sucesso da exposição sobre Amadeo Souza-Cardoso na Gulbenkian só tem par, em termos de afluência de público, na estreia do clássico da sétima arte “A Garganta Funda”, na ida década de 70. Por regra, nas exposições de arte a peça mais interessante na galeria costuma ser o inevitável extintor que decora uma das paredes. Mas se aparecer um tanganhão dourando a mercadoria com modernismos e cubismos e outros ismos, as pessoas, fartas de serem consideradas uns pobres diabos a leste das correntes artísticas, acorrem aos magotes. Cem mil visitantes esqueceram o subdesenvolvimento cultural em casa. Três horas numa bicha para comprar bilhete e aceder ao cafarnaum prenhe de objectos maravilhosos pendurados nas paredes, e ainda respondiam aos jornalistas quão felizes estavam por terem esta rara oportunidade. A reputada e recatada Gulbenkian abriu durante a noite, como uma loja de conveniência, ou bordel, para satisfazer os seus clientes. Na boa maneira de ser portuga, os latentes apreciadores de arte deixaram para o último dia a ida ao Amadeo, como se a exposição fosse a conta da luz ou da água ou o impresso do IRS.

Na antestreia do filme “Branca de Neve”, no cinema São Jorge, uma jornalista chagava o juízo de João César Monteiro com o comezinho facto dele ter desbaratado 84 mil contos de dinheiros públicos num filme sem imagem. Perante a insistência da periodista, que não se calava com a pergunta, se ele achava bem andar a gastar o dinheiro dos contribuintes portugueses daquela maneira, o realizador respondeu: “quero é que os portugueses se f***”. E deu o mote para o consumo de cultura em Portugal. Num país em que o maior acontecimento cultural dos últimos anos foi o aparecimento dos “Morangos Com Açúcar”. Uma fábrica de actores e músicos. Um terreno onde desabrocharam talentos mil. A kriptonite que feneceu as gerações sem futuro. Os visitantes da Gulbenkian depois da passeata em frente dos quadros foram para casa ver as telenovelas da TVI, SIC ou RTP. Corolários naturais da evolução cultural em Portugal. Um país onde Caronte, o barqueiro do Inferno, levou os pobres diabos para o lago Estige e poupou os consumidores esclarecidos.

domingo, janeiro 14, 2007

E nós pumba, catrapumpa, pumba

A terra dos lusos avança na senda da grandiosidade camoniana, dos heróis de pura alma e coragem na sua liça, do cheiro a pétalas de rosa do defunto corpo libertado, dos feitos tão grandes que têm de ser encaixados na História a golpe de pontapé, como o envenenado (e inchado) corpo de Alexandre VI, o Papa Borgia, no seu caixão. Para trás fica o irritante “se”. Se… eu tivesse nascido num país a sério, um génio seria, mostraria a John Archibald Wheeler que os “buracos negros” têm pêlos. Se… eu tivesse nascido num país com um meio científico descobriria uma engenhoca matemática para captar a respiração do gato de Schrödinger. Se… eu tivesse nascido noutro lado amigaria com Brad Pitt e Angelina Jolie. Se… cá crescesse mangas e papaias, fazia-se cá salada de frutas. Se… a CIA transportasse os prisioneiros de bicicleta, hoje os euro-deputados investigariam as “bicicletas das CIA”.

Nas matérias importantes damos cartas (e de Bridge, que é mais difícil). Na organização de eventos desportivos cantamos em coro com Britney Spears “oops! … I did it again”. Depois dos retumbantes sucessos na bola chegou a vez dos popós. O foguetório para a realização do Lisboa-Dakar 2007 foi lançado pelo canal de TV para o qual pagamos taxa. Foi a melhor organização de sempre! Os elogios rasgavam o sinal aberto da RTP. O secretário de Estado do Desporto, Laurentino Dias, luziluzia felicidade na tenda VIP, agarrado ao rico pastelinho de bacalhau, calando as más-línguas que insistem em afirmar que não existem VIPs em Portugal mas sim ICCs (Importantes Como o C***). Fazendo um parêntesis linguístico: há quem diga que os acrónimos não têm plural mas fica estranho dizer “tenho a colecção dos CD do Tony Carreira” e não “sou o afortunado proprietário da colecção inteirinha dos CDs do Tony Carreira”. De volta às Wacky Races, esqueçamos que as emissões de CO2 do combustível gasto durante a prova totalizam 3 625 toneladas, um planeta mais quentinho poupa-nos nos blusões e peúgas, para o povo esta prova motorizada foi mais um motivo para a febra e o tintol. Era vê-los pernoitando em tendas (normalecas, não VIP), empoleirados em árvores, estoicamente alapados num sítio para marcar lugar, satisfeitos por verem passar os veículos – moderna variante do “ver passar os bois”.

Para ajudar na festa os santos de casa fizeram milagres. Os nossos aceleras nos carros e nas motas atravessaram o território no primeiro lugar da classificação. E não se pense que foi um jeitinho relações públicas dos outros pilotos para com os pagantes anfitriões, a luta foi renhida, dura e poeirenta. Sucede que no Portugal do planeamento antecipado não nos podemos refugiar na velha sabedoria popular para encolher os ombros derrotados, sem pelejar para brilhar dentro de fronteiras, porque a alma é pequena logo não vale a pena. As realizações caseiras têm sido elefantes cinzentos, enormes, palpáveis, e, como consequência, a sabedoria popular renova-se. De facto, “em casa de ferreiro espeto de ferro”, reflecte melhor a nossa maneira de ser no terceiro milénio.

Segundo parece esta nova alma lusa vem de longe, dos recuados tempos do Cavaco Silva estudante universitário, quando ele frequentava o Martinho da Arcada. Enternecedor explicou-nos, na comemoração dos 225 anos da popular casa de comes e bebes, que no início do mês havia "massa" para o lanche de iogurte, copo de leite e torrada ou queque. E que no resto dos dias os empregados fechavam os olhos tolerantes ao “minhoca dos livros” que ocupava uma mesa a tarde inteira com um copito de leite na conta. Esta realidade paralela foi benéfica para o país da complacência democrática porque prevaleceu sobre uma outra realidade daqueles tempos. Quem estudou em Lisboa sabe que as coisas se passavam de forma diferente. Sempre que se sacava dos canhenhos nos cafés os empregados trocavam olhares desconfiados. Os donos dessas baiucas não permitiam que se estudasse no estabelecimento e muitos tinham afixado o afugentador cartaz: “proibido estudar”. (Seria aterrador se esta realidade tivesse predominado. Hoje estaríamos garrotados com atraso económico e assombrados por funâmbulos no poder a equilibrarem as finanças mais uma legislatura e quem vir a seguir que feche a porta).

Nasceu um país de mangas arregaçadas para o trabalho, do esforço suado em bica, do calo na mão (ou no órgão que trabalha). Só no ano passado o Governo criou 79 grupos de trabalho. Desta vez não foram distribuídos apenas tachos para os boys & girls, mas criaram-se equipas competentíssimas, encharcadas de conceitos em inglês, para uma profunda avaliação de situações, identificação de problemas e apresentação de soluções para melhorar o que pode ser emendado e exterminar o que não tem conserto. Não deixa de ser premonitório que o quarto de Cavaco Silva dos tempos de estudante seja agora uma casa de banho. Lugar onde o esforço é sempre recompensado. Tal como sucederá aos trabalhadores portugueses que arrastam o novo fado económico, inventor da fórmula mágica para os problemas do Capitalismo: “trabalhar mais e ganhar menos”.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Sinais exteriores de tristeza

Antigamente havia um pedaço de sabedoria popular que os pais mais mata-frades (anticlericais e também homofóbicos) repetiam aos filhos como bússola para a vida: “não confies num homem com saias” – diziam com olhar sério, agitando o dedo indicador em frente do nariz do amedrontado rebento. Neste rol incluíam indiscriminadamente os escoceses, os maricas, os espontâneos no Carnaval e os padres. Claro que os actuais progenitores – se fossem funcionais e ensinassem os filhos – não diriam tamanha barbaridade (diriam outras como sucede com todas as gerações), porque vivermos e respirarmos tolerância, e compreensão por culturas e hábitos diferentes. Arthur Brown, Alice Cooper, Marilyn Mason ou os Undercover Slut não fariam um tusto com a provocação e o choque connosco na plateia. Tivéssemos nós existido desde a grande migração de África para os outros continentes e a História da Humanidade seria um desfiar de húmidos beijos, calorosos apertos de mão e fraternos abraços.

Graças ao êxito de bilheteira do filme “Braveheart”, realizado e protagonizado por Mel Gibson, sobre uma versão romanceada da vida do herói da independência da Escócia William Wallace, os escoceses foram reabilitados aos olhos da Civilização, e o kilt passou a ser uma proposta dos costureiros mais ousados para os consumidores de fashion. Os maricas, hoje chamados “alegres”, terão compreensíveis razões para manifestar alegria, pois podem estar na marmelada no banco do jardim, sem a reprovação dos transeuntes, chocados com o bigode inteiriçado, devido à electricidade estática provocada pela fricção. Os excessos dos foliões carnavalescos estão perdoados, depois do Carnaval se ter tornado num produto comercial para atrair turistas, e a figura do incomodativo xexé ter sido substituída pelo simpático travesti. Restam os padres e isso… é outra conversa.

O Cristianismo começou com a melhor história do mundo para camuflar o adultério. Atormentada com uns dias de atraso no período, quiçá por ter cedido os seus favores íntimos a um vizinho galifão, ou ao esbelto moço da padaria ágil no piropo indecente às mulheres casadas, Maria sofria insónias terríveis. Há 2007 anos, mais coisa menos coisa, o seu irreflectido deslize era castigado com a lapidação, e os rectos habitantes de Séforis preferiam as pedras mais pequenas para que a morte fosse lenta. Ainda não se tinha ouvido falar da “primeira pedra” e atiradores não faltavam. O seu dilema aumentava com o passar dos dias sem vislumbre do sanguinolento líquido. Talvez tenha pedido conselho a Ana, a sua experiente mãe, conhecedora dos ancestrais truques da sua tribo para manter os patriarcas na ilusão de domínio conjugal, ou recorreu a uma vizinha pespineta, ou, na aflição, potenciada pela falta de descanso, a sua mente lembrou-se de misturar o divino na justificação da inusitada gravidez, que não podia ser de seu marido pois este sofria de disfunção eréctil, por ter passado muitos anos sentado no banco da carpintaria fazendo artesanato regional. Maria deve ter escolhido o momento ideal para lançar a sua pérfida explicação. Após o jantar, quando o corpo está confortado e o espírito vagueia para o descanso, abeirou-se do velho esposo e terá dito: “sabes, José, estava na horta apanhando couves para o jantar, quando um anjo muito belo, todo luz, desceu do céu e anunciou-me que eu ia ter um filho sem união carnal com um homem”. Ao que José respondeu: “está bem”. E assumiu a paternidade do pimpolho feliz por poder afirmar a sua virilidade perante a comunidade.

Culpar o Espírito Santo pela gravidez foi uma autêntica inspiração (divina?) de Maria. Não envergonhou o marido e escapou ao apedrejamento. Mas teve outra consequência muito mais importante que ela não podia prever. Originou o melhor negócio do mundo. Um negócio que movimenta milhões (de qualquer moeda) sem vender nada material, apenas fornece conforto espiritual e palavras de consolo, nem precisa de capital próprio para investimento, ele vem daqueles que vão consumir o produto final. Isto sim é descobrir o ovo de Colombo empresarial. O filho de Maria saiu melhor que a encomenda. Esperto que nem um alho, deixou marca nos que de perto privaram com ele, que após a sua morte dedicaram esforços a perpetuar-lhe a vida fantasiando-lhe os episódios. Insinuando-se junto das mulheres para chegarem às carteiras dos maridos, edificaram um colosso lucrativo de colocar a Microsoft ao nível de um botequim de bairro. Hoje um frade, um padre, um bispo, um cardeal podem comer que nem um abade por causa da expedita mentira de Maria.

O poder da padralhada em Portugal sobe mais que o custo de vida resultado da limpeza dos velhos tapetes em Roma. O Vaticano tem feito o seu aggiornamento à sociedade controlada pelos Meios de Comunicação Social. João Paulo II, um génio das relações públicas, beijou chãos de aeroportos, benzeu tudo o que era relíquia, na hora da morte distribuiu lenços aos santuários como se eles fossem únicos (e não produção em série). Para Fátima mandou a bala do revólver de Ali Agca, personalizando ainda mais a ligação com o local, e recolhendo admiração e cega devoção dos peregrinos. Bento XVI começa de forma histórica o pontificado visitando a Turquia para amansar os otomanos. Com acções bem planeadas o Vaticano colocou a religião no centro da vida das pessoas. Nos países atrasados ela é bem-vinda como um farol para iluminar as amarguras da vida. Aproveitando o posto privilegiado nesses países, os padres tomam de assalto as consciências das pessoas, torcendo-as para o seu único propósito – dominar.

O referendo sobre o aborto vem que nem ginjas para testar poderes. Na sacristia vai uma lufa-lufa contando baionetas e afiando punhais para uma luta pelo influxo divino que a matéria orgânica supostamente tem. No piedoso site do Patriarcado de Lisboa, o cardeal, entre duas baforadas no cigarro, pincela com ciência: “o cruzamento dos métodos anticonceptivos com os métodos abortivos e as soluções químicas para a interrupção da gravidez fizeram diminuir a realidade do aborto de vão de escada”. No entanto, não há métodos contraceptivos, métodos abortivos ou soluções químicas que nos salve da religião de salão nobre. Há anjinhos há. Os anjinhos somos nós.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Ó xente doutra terra

O neo-liberalismo económico português evolui de forma curiosa. Faz lembrar o científico Lenine de um passo em frente dois atrás, ou o trôpego Vasco Santana, empiteirado, pedindo lume ao candeeiro de iluminação pública, ou a santa inocência do Punk Rock classe trabalhadora dos Angelic Upstars em “Never ‘ad nothing”. A evolução para trás da economia portuguesa recoloca-nos, em espírito, nos tempos do ouro do Brasil, no reinado de D. João V, e, em corpo, na época dos tapetes rotos do Palácio de Sintra, no crepúsculo da monarquia com D. Carlos. Na fértil imaginação dos governantes estamos a esculpir um futuro sem arestas como as curvilíneas estátuas de Henry Moore. No emagrecido corpinho do povo dói como numa cobaia de laboratório, sujeita a experiências duvidosas de um, ainda mais alucinado, Dr. Frankenstein manipulando bocados de teorias económicas mortas, em adoidados testes, não para criar teratológica vida, mas para destruir um monstro – o “monstro do défice”.

Para usar uma Língua cara aos economistas podemos dizer que o neo-liberalismo económico cá da terra está all in the mind e manifesta-se num serôdio optimismo de sorriso Pepsodent encavalitado nos rostos de Belém e São Bento. No que diz respeito ao regime político nacional é um optimismo tostadinho dos dois lados como a torrada. Estas rabacholas atitudes positivas – governamental e presidencial – têm laivos daquele masoquismo de uma Beatriz Costa, despreocupada com as escoriações nas mãos, a cantar “água fria da ribeira”, ou de um Kierkgaard invertido que, em vez de atormentado pelo “espinho na carne”, se deliciasse em perfurar a carne alheia com um espeto. O casalinho no poder delegou sobre a população o transporte do fardo de anos (sem fim à vista) de má governação. Esperemos que não lhes suceda o mesmo drama familiar do tebano casal, Jocasta e Laio, com o seu filho Édipo. Se Presidente da República e Primeiro-ministro forem os progenitores, nós seremos os filhos, e tanto na versão mais trágica de Sófocles, ou no quase final feliz de Eurípedes, cegamos… mas de imbecilidade.

Em termos de realizações concretas o “neo-liberalismo galo de Barcelos e fumeiro” é “um lince da Malcata de papel” (aportuguesando a citação de Mao Zedong). Não assusta e se calhar não existe. Mas o efeito de não ter cheta no bolso, consequência de opções políticas assentes no constante agravamento da carga fiscal, está a aparvalhar das pessoas. Só assim se explica certos anódinos factos que se vão passando aquém e além Tejo.

O primeiro, como não podia deixar de ser na terra consagrada a Maria, vem da inestimável figura do padre paroquial. O tarasco padre de Oliveira de Azeméis anda a distribuir panfletos com fotografias de fetos mortos num contributo pessoal para a campanha pelo “não” ao aborto. Ora o amnésico prelado esqueceu a História e a fisiologia humana. Em vez de fetos, poderia muito bem distribuir fotos de corpos esturricados pela Inquisição no Rossio e Terreiro do Paço, para, dentro do mesmo frenesim educativo, mostrar aos seus paroquianos uma das razões do seu endémico atraso intelectual, crendice, subserviência ao divino e mau gosto no vestir. Por outro lado, como homem, ainda por cima passado pelo seminário, saberá com certeza por experiência própria, que o género masculino é responsável por lançar à pia milhões e milhões de meias-criancinhas, e que mesmo esquecendo a herética adoração ao deus pagão Onan, pelo seu carácter anti-vida atentatório dos Direitos Humanos, esta actividade privada varonil conta para a Igreja como um pecaminoso semi-aborto.

Outro facto curioso que sobressai no bestiário nacional reporta-se ao mau hábito da “meia-informação” que nos fornece os serviços do Estado. Embandeirou-se em arco o Plano de Recuperação de Dívidas e o Plano de Combate à Fraude e Evasão Fiscal como as novas minas de volfrâmio para enriquecer o erário público e por tabela o cidadão cumpridor. Anuncia-se com pompa o “fisco recupera 352 milhões de euros”. Rebentam foguetes de merecida festança. Mas não se explica quanto foi gasto para conseguir este prodígio. Se gastaram 353 milhões, não sei se será um bom negócio, e para quem conhece a “normal forma de ser português”, esta suspeição não é tão descabida como possa parecer à primeira vista. “Já foram feitas 8 500 penhoras e mais 4 000 vêm a caminho”, declara inchado de natural empáfia o ministro das Finanças. Mais aplausos, rolhas saltam das garrafas de champanhe, serpentinas voam pelo ar e mais foguetes estrondeiam. Mas esquece-se o político de dizer quantas penhoras foram puro abuso de poder e, depois de remexidos os poeirentos papéis e muitas horas perdidas pelos contribuintes saltando de guichet em guichet, concluiu-se que afinal nada deviam. Quem está familiarizado com a trapalhice burocrática dos serviços do Estado não estranha ver os tarecos leiloados por engano, e depois para desfazer esse engano, como dizia o outro: “isso dá cá uma trabalheira”.

Um novo herói nasceu para juntar ao juiz das jeans e t-shirt. Paulo Macedo, Director-Geral dos Impostos, ganhou a admiração dos trabalhadores do fisco que, por nunca terem emigrado, não conheciam a figura do capataz para os obrigar a trabalhar, e antecipam a portuguesíssima saudade se ele partir. Por causa da nova Lei dos Vencimentos da Função Pública os funcionários não podem receber mais que o Primeiro-ministro, e os 23 mil euros do gestor-maravilha colidem, por larga margem, com os parcos 5 mil e trocos de Sócrates. O sindicato dos trabalhadores das Finanças saiu em defesa do director, não porque ele fosse seu filiado, mas porque é uma estrutura de classe sempre do lado dos injustiçados. Que 23 mil são uma caganifância comparado com os resultados alcançados. Que devia ser encontrado um compromisso para o génio das cobranças difíceis não abandonar o gabinete. Que o povo perderia um homem providencial. Como todos os sindicatos protestam, protestam, protestam mas não apresentam soluções.

A solução para o problema do milionário vencimento é simples, já testada com êxito no nosso Scolarão e chama-se patrocínio. Um banco, uma empresa de telecomunicações ou informática, uma queijaria, uma pichelaria, uma retrosaria, um quiosque de jornais agarrariam esta oportunidade de ouro para promoverem os seus produtos. E o amado director usaria autocolantes (ou bordados) publicitários no fato italiano.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Ena pá!... 2007

De Boliqueime veio um santinho montado no seu burrito, vestido de chita e algodão, troteando numa SCUT, em direcção a Lisboa, para fazer milagres, prodígios, sortilégios, magias, coisas maravilhosas de pasmar animais, vegetais e minerais. Encantamentos de fechar Hogwarts, envergonhada, e escancarar a Universidade Católica, libertando o mago da Economia e Finança para a cidade e o mundo (reduzido, depois da retumbante vitória no Euro2004, ao Portugal dos pequeninos). O eleitorado da estola de raposa ao pescoço via-o como um Prof. Alexandrino que distribuía firmeza e hirteza num país fraco das canetas para correr com os grandes, ou com os pequenos, e ainda com os médios. Simplesmente, não corria, mas também não parava quieto. Não permitia que o “empreendorismo” tomasse conta de todos os negócios lucrativos deixando para o Estado os ossos do prejuízo. Apostaram nele, como uma taluda garantida, e ele embicou o burrito para Belém. Do seu passado ficaram para a História as melhores cargas da polícia, em tempos democráticos, que em nada devem às vilipendiadas e repudiadas traulitadas da polícia de choque do regime fascista. Apesar da prodigalidade dos hematomas (e, pior, ossos partidos e balas no corpo) distribuídos aos desgraçados que tiveram o azar de andar pelos locais dos protestos, a sua índole seráfica e querubínica, de santinho milagreiro, nunca foi beliscada. (O cassetete democrático tem outro doer, que nos faz ver a luz sobre o nosso errado comportamento e não as estrelas, antes de desmaiar).

Não deixa de ser irónico, numa época em que os ditos valores morais e éticos saem pianinho quando uma carteira se abre, ou “fruta e rebuçadinhos” são atirados sobre a mesa, que seja preciso publicitar uma reserva de serafins e querubins na sociedade. Impolutos poços de cloreto de cádmio para caçar neutrinos. “Popeye” Doyle e Buddy Russo incorruptíveis contra… qualquer coisa. Elliott Ness ao cubo. Uns santos de fazer inveja aos santos encartados pelo Vaticano. Em Portugal, os seráficos são mais que as mães: o Palácio de Belém, a PJ, o Tribunal de Contas, a Direcção-Geral de Impostos, as Entidades Reguladoras & etc., os seus toques são superiores ao de Midas, porque produzem algo mais valioso que o ouro (ou, modernamente, o crédito bancário), irradiam idoneidade e honradez como estrelas no céu a guiar o nosso caminho. Desde o cimo até, mais ou menos, o meio da escadaria do poder existem uns seres e instituições em quem nós podemos confiar as chaves de casa. E o nosso Presidente ombreia com os melhores. O seu palmarés de prémios com designações germanófilas em prol do mundo livre é invejável.

Mas o maior serafim do mundo é obviamente Wbush, que introduziu a simplicidade da navalha de Occam na política internacional, definindo com objectividade inabalável o bad e o good. Um afegão morto é um taliban. Um iraquiano morto é um insurgente. Não se pode ser mais simples que isto. A sua cruzada tem contribuído em força para a evolução cultural da Humanidade. Nos últimos dias deu origem ao melhor motion-pictures de sempre. O pequeno filme sobre o enforcamento de Saddam é uma obra-prima que tornou redundante a ida ao cinema este ano. A cerimónia dos Óscares tem, por certo, já escolhido o seu vencedor. É claro que os chefões da indústria cinematográfica americana terão certa relutância em pegar na película por não ser possível fazer sequelas: "Saddam reloaded" ou "Saddam revolutions". O actor principal morre no fim, que chatice para o happy end e a formação moral das criancinhas, mas isso nunca foi impedimento para os criativos argumentistas de Hollywood, que darão a volta por cima com outras personagens como Barzan al-Tikriti ou Awad al-Bandar e uma fila de ex-dirigentes iraquianos que espera pela corda no pescoço. Filmado num documental estilo “Blair Witch Project”, mas fazendo parte do “Wbush Saint Project” para angelizar o mundo, passado à hora de almoço pelas televisões portuguesas, fez os homens de boa vontade beber mais coca-cola.

O porta-voz do Governo americano no Iraque, Mowaffak al-Rubaie, veio dizer que Saddam não foi humilhado no enforcamento. E tem razão. Do ponto de vista das pessoas sensatas o enforcamento é que foi humilhado por Saddam. Todos sabem que um enforcamento não se faz assim. Implica uma árvore com um ramo paralelo ao chão, meia dúzia de tipos vestidos à cowboy, o futuro enforcado deve estar montado num cavalo com as mãos atadas atrás das costas, e depois de uma breve prece cristã, um homem idóneo com uma estrela de xerife ao peito dará uma palmada na garupa do cavalo consumando a execução. No final vão comemorar para o saloon a morte de um outlaw e, ao som dos Bon Jovi na pianola, apalpar o rabo às dançarinas de can-can. E ouvem-se gritos de “drinks for all” e não “viva Moqtada al-Sadr”. Não restam dúvidas de que Saddam desprestigiou a sagrada instituição do enforcamento.

Em matéria de espanto longe vão os tempos do porco a andar de bicicleta. Depois de um paraplégico, o xeque Ahmed Yasin, dirigente espiritual do Hamas, ter sido morto com um míssil – podiam ter-lhe roubado a cadeira de rodas que ele morria de fome na cama, ou atirá-lo por uma escada abaixo, ou misturar-lhe polónio 210 nas papas, mas não, insistiram que fosse um míssil para o fazer em fanicos – e depois do maior criminoso do século XX, Henry Kissinger, ter passado ao largo da Justiça duas unidades astronómicas (300 milhões de quilómetros) é natural não se espantar com nada. E ainda mais é legitimo matar democraticamente (e não ditatorialmente) para satisfação da nossa alma anelante de liberdade. Este ano começa bem. Cavaco a exigir “progressos claros na educação, economia e justiça” e o filme do ano está visto. Ena pá… vai-nos sobrar muito tempo para viver com qualidade!