Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

terça-feira, novembro 28, 2006

Dois portugueses de sucesso

Do solo pátrio têm saído homens de incontestável valor, que têm dado o corpo e a alma pela Humanidade e, por arrasto, elevaram a nossa bandeira bem alto nos mastros estrangeiros, fazendo povos alienígenas trautear o nosso hino como se fosse o último êxito de Roberto Leal ou Marco Paulo. E, despertando a vontade compulsiva de virem jogar nos nossos campos de golfe, comprar artesanato, banhar-se em sol, praia e História, ver espectacular paisagem, desfrutar ameno clima e comer culinária regional.

Os nossos primevos emigrantes sofrendo de atricose, o corpo forrado a pêlo, de abundante e inevitável vibrissa, nariz vermelhuço, bem atoucinhados, com a barriga a saltar fora das calças, adeptos do palito e convictos enófilos, vão sendo substituídos por uma nova leitegada, menos lapuz, mais citadina, que cuida da sua imagem e acredita nas ciências naturais e nas tecnologias de informação, não esconde o seu lado feminino mas lê revistas de homens, trocou o barbeiro pelo cabeleireiro, o palito pelo telemóvel e o álcool pela gasosa, fala várias línguas e só tem barriguinha durante o Inverno.

Neste grupo está o chic señor Barroso, (Mr. Nobody para os ingleses), político de poliglota logorreia que saiu zinzilulando pelos beirais da Europa como uma avezinha bem ensinada para servir de avindor aos donos da União Europeia. É verdade que emigrar depois de uma derrota eleitoral não é novidade mas é sempre uma boa opção política. A sua saída foi mais parecida à de um sovaqueiro, que foge de um autocarro da Carris, depois de apanhar o cobiçado objecto alheio, do que um chefe de família política com dificuldade em sustentar os seus apaniguados. Mas agora ao vermos o seu sucesso na estranja, a falar aquelas línguas todas inclusive o espanhol, é mais uma quina na bandeira, mais uma corda na guitarra, mais nata no pastel, mais colorido no galo de Barcelos, mais areia na Costa da Caparica, é mais um fôlego no patrioteirismo abichado no Euro2004. Como ele sai da limusine de “bacalhau” estendido, confiança no rosto, tenuemente perfumado, fato bem passado, inovadoras ideias na manga, embala o nosso patriótico coração – quase nos apetece gritar bem alto: “Portugal, Portugal”. Ele é dos nossos, é mais um que pertence ao clube dos que têm a sorte de ver o Toy, ou o José Alberto Reis, ou os D’ZRT numa Casa de Portugal em qualquer esquina do mundo. (Dentro de dez anos esperamos pelo seu regresso como Presidente da República salva pátrias).

Outro emigrante de sucesso, Nadia Almada, saiu do Campanário, Madeira, com um género e nome diferentes. Era homem e chamava-se Jorge mas isso não o impediu de lutar pelo que acreditava – casar de vestido branco. No seu Campanário natal teve a inspiração divina, olhando o sino da igreja, de que o seu futuro estava no extenso mundo além-mar, o qual, segundo o padre António Vieira, os portugueses têm à sua disposição para morrer. Os apetites sexuais trocados não lhe agouravam grande futuro nas terras de Alberto João Jardim. Podem ser tolerados e degustados na negridão da noite, mas nascendo o dia são arrenegados como o próprio Mefistófeles. Entre ser um anónimo traveca, olhado com desprezo pelos vizinhos e corrido à pedrada pela catraiada, Jorge decide sonhar com o céu do emigrante, com o cantinho onde as ruas estão pavimentadas a ouro e meteu na mala de plástico a sua roupa interior feminina e abalou para a Inglaterra.

De certa maneira estas duas vidas são semelhantes. Dois portugueses de incontestável valor foram à procura de um sítio onde fossem reconhecidos e apreciados. O primeiro, um político mendaz que ficaria na História como um moço de fretes, incapaz de uma ideia original, um cherne que se afoitou para sair do mar mas que acabou num charco, um mensageiro da tanga, um corneteiro da falsa retoma, um faniqueiro da política que não serve para o glorioso país do futebol. Deo Gratias pela Europa que viu as qualidades de político faneco, óptimo para não fazer nada, que é grosso modo o resumo do trabalhoso dia a dia de um Presidente da Comissão Europeia. É um herói.

O segundo, um rapaz sensível, com dons para dona de casa, perdido numa terra de labruscos, teria um futuro negro. Achincalhado pelos seus pares, amaldiçoado pelo padre, nunca chegaria ao paraíso económico encharcado de qualidade de vida criado pelo Governo Regional, sem hipótese de aparecer nos grandes eventos culturais da ilha, comer lapas com os importantes da terra ou usar biquini na praia. As terras de Sua Majestade deixaram-no espraiar a Teresa Guilherme que todos temos dentro de nós, mudou de género, agora é uma bonita mulher de quem nos podemos orgulhar. No Big Brother britânico brilhou, arrasou e arrebatou o prémio. É uma heroína.

Políticos e mulheres são os principais produtos de consumo da nossa sociedade (desenganem-se as colas e os hambúrgueres), são eles que nos deixam saciados e satisfeitos, e com vontade de voltar ao supermercado, e neste aspecto um pequeno país dá cartas no mundo com dois emigrantes de sucesso. In excelsu gloria!

domingo, novembro 26, 2006

Heróis que até farta

Em tempo algum da história nacional o peito luso esteve tão saliente como neste início de século. As vitórias no futebol lançaram-no na estratosfera da grandiosidade. O coração bate com vontade de conquistar e já se prevê uma mudança nas propostas dos nossos costureiros. A saia masculina será substituída pela loriga para nos atiramos “martimomizmente” contra as portas do castelo não deixando fechar o pleonástico futuro com futuro, repetindo o simbólico acto do irmão da bela D. Maria Paes Ribeiro, na conquista de Lisboa aos mouros. No novo espírito guerreiro enterrámos 800 anos de lazeira e zurrices históricas, que só o pufismo bem orquestrado pela ideologia do poder político (aquela bem oleada máquina de propaganda de Salazar) tornava grande nas nossas cândidas mentes de alunos de escola primária. Hoje encontrámos uma vereda, que se tornará caminho ao andar, justificativa de qualquer falperra da Direcção-Geral de Impostos (actualmente, inglesados nos conceitos, conhecemos “falperra” como “stand up and deliver”, o velho grito dos salteadores das estradas de sua majestade). Agora o dinheiro público não é gasto em caganifâncias. Todo o tostãozinho é consumido em urgente obra de reconhecida utilidade.

Os andrajosos primevos, os estrangeiros a caminho da Terra Santa, os marinheiros ratívoros, a chacota dos europeus, “o encosta para aparecer”, tudo ficou para trás, como um mau filme de Manoel de Oliveira (tenho a sensação de que são todos aqueles feitos depois de “Douro, faina fluvial” apesar do laudatório geral). Mas uma época assim precisa de novos protagonistas. Podemos respirar de alívio. Os heróis surgem de todos os lados como cogumelos que quase os temos de correr à paulada. No topo da escala está um Presidente que não põe sal na moleirinha do Governo como desejaria o chefe da oposição. É bonito vê-lo de roteiro em roteiro, de inclusão em inclusão, até estarmos todos incluídos no bufete dos ricos.

Houve erros naturais de percurso, como, por exemplo, mandar aos Jogos Olímpicos uma selecção na modalidade de futebol quando a correcta inscrição seria boxe ou, na falta, luta greco-romana. Ou acreditar na ideia hilariante de que com uma máquina fiscal funcional todos vão pagar menos impostos. Ou, milagres evidentes de Fátima, quando um nigeriano se transmuta em português, ou um ciclista ganha uma medalha mas na sua especialidade fica-se por um modesto 25º lugar.

Quando os jovens estavam na eira, agarrados ao cavaquinho ou acordeão, saltitantes ao som de vozes esganiçadas, brilhantina nos cabelos. Quando as hortas chegavam até junto dos carris dos comboios. Quando o pão com azeitonas era um almoço. Naqueles tempos em dizia o impagável Salazar “com a charrua numa mão e a espada na outra vamos defender a nossa sobrevivência”, a vida corria pacata e os únicos sobressaltos eram as chuvas fora de estação. Mas quando, por desvario paterno, os jovens começaram a ir para as Universidades a coisa mudou de figura. De moços casadoiros passámos a ter uma profusão de intelectuais rabigos. E dois deles flutuam no caldo morno da nulidade nacional. Têm lugar dianteiro na saloiada geral e são motivo de merecido orgulho. Poderiam até provocar umas boas risadas à Diógenes, não fosse exemplificarem a triste realidade dos meios académicos lusos, composto por uma caterva de pacóvios que só procura o poder ou estar sentado celestialmente à sua direita.

Nuno Rogeiro, célebre coleccionador de brinquedos de guerra, aos Domingos vasculha as prateleiras do Toys’R’Us à procura das últimas novidades, infelizmente, durante a semana vende as suas aulas a Universidade. Xilófago conhecido nas épocas balneares e azucrinador do ”bom senso” o resto do ano, tem dado ao pensamento lusitano as melhores pérolas extraídas da ostra da análise. Quem não se lembra dele segurando o seu aviãozinho de brincar e a garantir que a razão da guerra no Iraque não era o petróleo, pois o país só representava 8% da produção mundial. Este sábio foi incapaz de fazer umas simples contas de cabeça. Se um país tem as segundas maiores reservas do mundo seria possível aumentar a produção para pelo menos 20%. Este vade-mécum da inteligência nacional deu outra garantia ainda mais impressionante. Ronald Reagan foi o responsável pela queda do comunismo, (esse mal contra a Cruz de Cristo e a propriedade dos privados), esquecendo que um doente de Alzheimer é capaz de fazer cair qualquer coisa. Razões têm os alunos para contestar o valor das propinas pois estão a comer gato por lebre… e não só nas cantinas. Os meios académicos são caracterizados por um imobilismo crónico que impede avançar para ideias novas. A razão é simples. Os professores ainda acreditam que a terra está parada.

Outro caso acometido de uma grave logorreia é o xilomante da política Marcelo Rebelo de Sousa que aos fins-de-semana nos estraga o Dia do Senhor com espiritismo e cristais purificados. As suas diatribes sobre qualquer assunto só serão comparáveis às sessões do Congresso americano ou a uma noite bem regada com vinho numa tasca de bairro. Enternecedor era o seu olhar quando falava do amigo brasileiro Scolarão que veio ajudar a levantar a nossa auto-estima. O afã com que agarrava a bandeira não nos deixou indiferentes, um homem de letras e de bola, é de aplaudir. Já quando a sua loquela se vira contra Santana Lopes, perde o tino, faz recordar o tema de investigação de Freud (o compromisso entre o superego e os impulsos sexuais reprimidos), mas, parafraseando a sabedoria popular, no oaristo partidário não se deve meter a colher. Quanto a nós podemos atingir a ataraxia, sem passar pelo jardim de Epicuro, basta uma simples olhadela pela RTP aos Domingos. Marcelo teve a revelação suprema de que o caso Obikwelu é um exemplo de como os portugueses são um povo hospitaleiro, sabem receber e integrar os emigrantes, esquecendo-se este lusificador que em 1991 a Polícia não tinha os meios nem a motivação para caçar os ilegais entrados no país (ainda não se tinha realizado o Euro 2004. Evento que deu às forças policiais e ao SEF, os meios mais modernos e eficazes de controlo da sociedade e combate à entrada ilegal em solo pátrio). Noutro comentário mostrava surpresa para com a atitude dos advogados da Casa Pia que andavam com “ar satisfeito, de sorriso, de galhofa até”, e que ele costumava seguir casos nos outros países, e que por lá os “advogados andam de cara séria” – não percebe que uma boa conta bancária em Portugal é motivo para felicidade. A desadequação doentia a toda a realidade circundante é outra característica dos nossos meios universitários.

Só nos resta lamentar as gerações que estão a ser formadas por ervas tão rasteiras que em bicos de pés pregam aos idiotas e tolos que somos. Mas a cara séria com que dizem alarvidades faz-nos situar, pesadamente e com estrondo, na nossa realidade judaico-cristã e tudo perdoar.

sexta-feira, novembro 24, 2006

Os bons e os maus

Em 1944, na ilha de Saijan, os ventos da guerra viravam a favor da tropa do Tio Sam. Os bravos G.I. Joes avançavam para a ocupar. O exército japonês ao retirar difundia entre os civis que os americanos vinham violar e matar de forma cruel e vil. Seguiu-se uma das muitas educativas cenas do conflito que não figura nas primeiras páginas dos livros de História. Mulheres com as crianças nos braços atiravam-se dos penhascos para a morte e, dos barcos, os soldados americanos abatiam-nos no ar para evitar o sofrimento da agonia quando chegassem aos corais. Havia uma razão de peso para esta venatória carnificina. Estratégica, diz-se no sábio calão bélico. A insignificante ilhota era um objectivo militar importante. Serviria no ano seguinte de base para o ataque às ilhas centrais. Dela foi lançado o maior bombardeamento contra Tóquio em 10 Março 1945, onde morreram mais de 100 mil pessoas, para engrandecer a contabilidade dos aliados e pavimentar o caminho para a Vitória.

Esta cena de evidente cariz cinematográfico não foi retirada de um negro policial de James Elroy, ou das partes mais cruéis e estéticas do Antigo Testamento, mas dos muitos factos da vida nunca passados ao celulóide dos milhares de filmes feitos sobre a edificante rectidão das tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. E mostra que, ontem como hoje, o campo do Bem e do mal estavam bem definidos. Os bons são os que vencem. E têm direito a continuar o espectáculo nos tribunais, a julgar os maus pelos seus horrendos actos, e refazer os factos sob a forma de História (condensada nos livros). Os maus simplesmente perdem e não têm direito a nada.

Em 1942 a canção mais em voga nas ruas dos Estados Unidos não era “White Christmas” de Bing Crosby, ou “Moonlight Cocktail” de Glenn Miller, ou sequer “Don’t sit under the apple tree” das Andrews Sisters que enchiam o Hit Parade, mas sim uma cançoneta de cariz racista de Carson Robinson apropriadamente chamada “We’re going have to slap the dirty little jap (and uncle Sam’s the guy to do it)”. Ela reflecte um sentimento popular de ódio contra um povo e também o bom samaritanismo político de levar a Democracia ao Japão. Estas são, desde 1776, as duas principais características da guerra americana. Quando entraram na Segunda Guerra Mundial os soldados americanos viam os japoneses como cruéis porcos sub-humanos e gostavam de os matar para roubar os dentes de ouro rebentando-lhes a boca à coronhada. Era normal ver-se o orgulhoso soldado EUA mostrar o seu cantil cheio de dentes. Numa famosa capa, a revista Life, mostrava a noiva de um soldado olhando para o crânio de um soldado japonês, assinado a caneta de feltro, pelos amigos do noivo lá na Companhia.

Na preparação inicial da guerra é necessário transformar cidadãos pacíficos em perigosos assassinos. Regra geral, entre as classes mais baixas ou entre emigrantes que procuram a integração na sociedade de acolhimento. As actuais tropas americanas pouco têm dos descendentes dos Pilgrim Fathers que desembarcaram do Mayflower, em Plymouth, em 1620 – não raro vemos um luso descendente na guerra do Iraque. Não restam dúvidas, os americanos são os bons nesta fita e ainda por cima lutam pela Democracia e Liberdade. São valores muito importantes para toda a Humanidade, que deviam ser vendidos nas mercearias do Sr. Belmiro de Azevedo, para estarem ao alcance de todos, e serem baratos como a uva mijona. No entanto, as cenas de crueldade desenroladas nas guerras são excluídas do conhecimento público, ou quando a exposição é inevitável, são passadas como excepções e manchas no alto código de honra militar. Como sucedeu com os episódios da prisão de Abu Ghraib.

Os valores americanos de ajuda ao mundo em agonia, como às mulheres japonesas da ilha de Saijan, são uma certeza que qualquer democrata-cristão compreende, pois têm dois mil anos de tortura e morte com o credo do perdão na boca. O pior são os outros maltrapilhos que não sabem como é bom o céu e não querem seguir as aventuras apocalípticas que S. João Evangelista escreveu na ilha de Pratmos. Preferem apostar em cavalos coxos como Paz, Solidariedade, Igualdade ou, o último anátema, Comércio Justo.

Os iraquianos não sabem a sorte que têm ao poderem beber deste cálice americano. Agora, podem aparecer na CNN e nas estações do mundo livre a sangrar nas camas dos hospitais. No tempo de Saddam isso era impensável, pois, para o ditador, a liberdade de expressão era uma batata do Entroncamento. E nós ficámos a saber o nome do chefe de cada Esquadra de Polícia do país nos comunicados sobre os estragos causados pelos carros armadilhados. As vozes de mau agoiro vão dizer que saiu o Ali Bábá de Bagdad mas entraram os quarenta ladrões para roubar o petróleo. E logo depois daquele espectáculo televisivo que foi a cobertura da guerra, cheio de militares fardados com medalhas e berloques e teorias de espantar, e especialistas do meio universitário sem rei nem roque, versando sabedoria a potes. Um espectáculo melhor que qualquer Festival da Canção, mesmo aquele que o José Cid ganhou vestido de blusão verde. Ao menos para um bom programa de TV a guerra do Iraque serviu.

Matar afegãos e iraquianos, com matar japoneses em tempos idos, é coisa sem importância. Eles não sentem a dor como nós. Se nos matarem um filho, a quantidade e qualidade da nossa dor é muito superior e mais intensa que a deles. Como exemplo para quem não acredita, relembro aquele artigo de esforçados jornalistas lusos, que para alarmar a consciência dos automobilistas compararam as mortes nas estradas pátrias com o número de mortos no Iraque, e chegaram à conclusão que nas nossas vielas morrem muitos mais. Só que se esqueceram de somar os cadáveres iraquianos e por uma boa razão, tal como os japoneses, são cadáveres de somenos importância caídos em nome de superiores valores ético-políticos.

quarta-feira, novembro 22, 2006

…e justiça para todos

Na terra onde os euros zicham das repartições do Estado para ante-projectos, projectos e obra feita, onde os portugueses estão em alta cotação, onde o futebol deu mais alegrias que as vitórias na Guerra Colonial, onde o caracol e o tremoço são marisco, onde só é pobre quem quer, onde as montanhas parem ratos, e os ratos não abandonam o navio, a apregoada “justiça igual para todos” só existe como tema para comentarista de TV ou diarista de pasquim barregarem ovinas crónicas para nanar meninos. Na prática é mais uma fantasia alucinatória resultado da reputada potomania nacional.

Faz lembrar aqueles temas das trovas do Bandarra, sonhos de 5º Império e de futuros risonhos em terras de Canaan… mas sem judeus. Fantasias alucinatórias de marinheiros esfomeados ou de reis praticamente imbecis, redoirados por Camões na ideia de que, damas pé de cabra e tolos enfarpelados, podem ser tragados como figuras da alta-roda mundial. Uma versão moderna do camoniano optimismo encontramos nos operadores judiciais, tão imbecis como os seus antepassados, mas também com cruciante dificuldade em admitir que estão somente a ganhar o seu dinheirinho, e não a cumprir um desígnio superior para além da Taprobana. Nas salas de audiência tratam-se como deuses, trocam galhardetes entre si, usam deferências sonantes, salamaleques dignos de um emir, piropos que ouvimos nos salões nobres da política, mas, depois de areado o verdete superficial restam apenas licenciados e bacharéis saídos de Universidades portuguesas, onde pouco ou nada se aprende, e a comida nas cantinas é má.

Quando nada é igual para todos – nem a saúde, nem a educação, nem o lugar à mesa… nem sequer a morte, uns têm o jazigo rococó no cemitério, outros a vala comum, outros a frígida laje das aulas práticas de anatomia – os novos optimistas, os novos filhos do velho Fado, Futebol e Fátima, querem vender o último peixe da ideologia burguesa. Apesar de já não sermos iguais em nada, ainda existe um território onde a igualdade se mantém firme como uma multinacional com os estatutos blindados. Esse virginal território iluminista é a Justiça. Mas que por diabo haveremos de ser iguais perante a Justiça? Percebe-se logo que esta boa vontade traz água no bico, quer dizer… na beca

O processo Casa Pia – para além de mostrar o problema escondido da homossexualidade que atormenta o homem português e que não desaparece com o rápido casamento heterossexual – teve a importância de alertar para o que se passava nos tribunais. Que estes são campo privilegiado de classes corporativas carregadas de mordomices e pouco dadas ao trabalho. Que atabalhoar meia dúzia de provas numa acusação chega para condenar. Que o arguido é o elo mais fraco. Que o motor da decisão final é a convicção do juiz. Que a prova produzia pelo réu serve para cumprir protocolo jurídico. Vejamos o que se passou. Começar uma investigação a partir de uma reportagem jornalística é estranho. O jornalismo vale o que vale. Mas, em Portugal, insere-se naquele mais vasto movimento em que toda a gente procura e… curioso… encontra a Verdade. Mais estranho ainda foi iniciar o julgamento sem dois elementos fundamentais: uma lista dos telefonemas entre os arguidos e fotografias dos libertinos a entrar, ou sair, das casas do deboche. Sem isso estamos há dois anos no paleio do “ouvi dizer” e o “passou-se assim”. Mas na altura a preocupação dos juízes foi usar a sua varinha mágica, isto é, decretar prisão preventiva. (Com tubarões envolvidos a tentação era irresistível). De uma coisa podemos ter a certeza. Nunca saberemos quanto custou todo este circo. Porque em Portugal o bolso do contribuinte não tem fundo, logo, não existe o hábito de fazer contas.

Na maior parte dos casos os veredictos eram favas contadas, os réus sem dinheiro, só podiam comer e calar. Depois do festival televisivo do processo Casa Pia, tudo ficará na mesma, mas o quadro da santaria dos heróis nacionais inchou com uma nova colecção de advogados e juízes. Com manifestantes nas ruas a gritar o nome do togado endeusado pelo processo mediático do momento. E, noutra edificante cena vimos o juiz descendo à condição de almocreve, anunciando em viva voz pérolas para o futuro: “era só o que faltava à Justiça que para o incidente de recusa do juiz tivessem em conta a opinião publicada ou até a opinião pública” – deveriam voltar os arautos e as trombetas para, de vila em vila, anunciar estas e outras boas novas.

A outra face da moeda deste sistema – os que estão a montante e fornecem a carne para ele funcionar – mudaram bastante. Na antiga ordem das coisas, os GNRs gostavam de vinho e os guardas da PSP, passados pela escolaridade obrigatória, eram viciados em “meninas da vida”. Trinta anos de democracia refinaram os gostos. Os GNRs estão mais esbeltos, até já podem andar a cavalo sem serem incomodados pela sociedade protectora dos animais, reclamando do peso que o animal tinha que transportar. O “guarda” da PSP agora é “agente” e o “melhor amigo” no bairro. E todos aprenderam com os estrangeiros as técnicas modernas de controlo de multidões, houve roupas bonitas para todos, armas e aparelhos à James Bond, novos laços e novas fontes de auto-estima, gratificados e horas extraordinárias, uma febre devoradora de fazer explodir mochilas, foguetório de elogios. Se o progresso não chega a Portugal, em forças da ordem estamos bem servidos.

O cerco policial na Bemposta, Bucelas, foi um dos momentos mais altos da execução, na prática, do extenuante treino espargido nas nossas forças de segurança pelos melhores cérebros em ciência policial. Foram 17 horas de cerco policial e 30 horas de vigilância, um aparato nunca visto fora dos filmes, uso da terminologia técnica correcta “temos a certeza que o suspeito se encontra na residência”, 25 homens bem fardados e equipados, megafones, micro-câmaras, cães, ambulâncias, “tivemos a necessidade de intervir com as maiores cautelas” – tudo isto para tirar o “Castanha” da cama que, com a derrota do Benfica, tinha dado dois tiros para o ar. Não se sabe se ele era católico ou muçulmano, que poderia justificar alguma parte deste espectáculo, pois na altura o SIS descobrira que bin Laden tinha comprado um mapa das estradas de Portugal num quiosque em Tora Bora. Finalizada com sucesso a intervenção policial as únicas declarações do Castanha ao entrar para o veículo novo da Guarda foram: “estou bem e vou de férias”. Disto tudo podemos concluir que a característica mais portuguesa não é o palito na boca e servir ensopado de borrego mas sim a tolice, que, quando nasce é para todos. E por isso somos apreciados no mundo.

A proclamada igualdade perante a Justiça é uma realidade, é um valor inegável das democracias bi-partidárias, de facto existe em doses farmacêuticas pelos quatros cantos de Portugal. Começa antes da entrada no tribunal resume-se a levar porrada democrática de “Batalhões de Intervenção Rápida” (nada a ver com a fascista “Polícia de Choque”) bem treinados, bem equipados, bem pagos, motivados e com consciência cívica, seja no Redondo, Vila Real ou ainda em Elvas e Vilar Formoso.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Velhas bruxas

Tempos houve em que elas caminhavam sobre a terra e eram a atracção principal dos espectáculos organizados pela Igreja Católica. Quando não existia indústria do entretenimento, a corte do Vaticano, fazia as vezes de Hollywood, proporcionando ocupação do tempo e do espírito no mundo conhecido. Apesar do empenhamento e brio profissional de santos bispos, padres e outros dedicados sequazes, o extermínio total é hoje questionável… e elas não fugiram para Espanha como somos levados a crer.

Teremos que olhar para as profissões liberais e nas “revistas das sopeiras” onde se narra a vida dos “botóxicos” e famosos portugueses, para encontrarmos a versão moderna das velhas bruxas. Elas irradiam alegria porque a vida está a acabar, saracoteando-se pelas festas e locais de trabalho, como velhas medusas petrificando o gosto estético dos espectadores inocentes. E, não têm apenas sexo feminino. Neste nível do jogo da vida as demarcações e fronteiras tornam-se brumosas como no androgínico Glam Rock dos anos setenta.

O golpe militar aprilino trouxe emancipação, estudos, profissões bem pagas, ideias arejadas e o sentimento de urgência que tudo o que é bom acaba. Tal como o Verão, o açúcar da pastilha elástica, as promoções nos pacotes de férias, os prémios dos concursos da TV ou o dinheiro antes do fim do mês, iniciando uma corrida louca para um fictício lugar onde ninguém quer envelhecer (a Neverland de Peter Pan revisitada por Michael Jackson). E os eternos treze anos de Lili Caneças, a ostensiva exposição de carne a caminhar para o encarquilhado de Fátima Lopes ou os dias subtraídos à idade de Cinha Jardim após a operação, são o resultado óbvio da publicidade das clínicas de estética. Se as pessoas querem bonito, bonito lhes parecerá, numa reconhecida homenagem popular à ideia kantiana de que o belo está na pessoa que julga e não no objecto em si.

Ao perder o brilho da pele, turvado com os riscos das rugas e melanomas da exposição solar, a mulher portuguesa instruída já não faz como a sua mãe. Não se envolve em saias, mete lenço na cabeça e arrima à lareira para aquecer os joanetes, antes vai às lojas de artigos de luxo e torna-se montra ambulante de marcas registadas. Com cintos de fivelas douradas e iniciais do designer ocupando o abdómen, ou roupas com etiquetas estampadas em lugar bem visível, ou pinta o cabelo louro L’Oréal num festival espampanante de reprodução anual dos corais ou migração das andorinhas. (Por seu lado, os homens tingem cabelo e bigode para capear a idade e adquirem aquele ar de eterno galopim do cantor Alex depois de ir à faca, ou de um “dinossáurico” autarca catrapiscando uma repórter boazona).

As velhas portuguesas perderam a noção da idade como factor biológico, e vê-las espalhadas pelas profissões liberais, especialistas, organizadoras de festas, indutoras e condutoras de caridade, empresárias, juízas, beatas seguidoras de mais um padre cantor, empoleiradas no aparelho de Estado, atarefadas ou ociosas, auto-sugestionadas na ilusão de cumprir um grande papel social, convencidas que o espelho está errado e que tudo é uma questão de iluminação do quarto, é mais triste que um passeio por Lisboa depois da morte de D. Fernando I.

Perderam todo o sentido da proporção e do gosto numa sociedade em que o ataque aos sentidos está a chegar à fase final com o controlo da audição e da vista, em que todos os sons e imagens correm o risco de terem de ser pagos para serem consumidos, as nossas velhas rebentam todos os padrões estéticos confundindo o belo e o feio numa amálgama onde tudo vale. Porque já não há padrões: nem Maja de Goya, nem As Crónicas do Cancro de Hirst, nem as carnes de Marilyn, nem os ossos de Julia Roberts. Agora são cabelos louros segurados a laca, roupa justa mostrando os efeitos da gravidade, os cintos largos, muita quinquilharia nos pulsos e pescoço.

O pior foi quando o velho bom juízo exigido às pessoas normais saiu pela janela, quando lemos declarações pronunciadas por velhas acerca de uma juventude que anda nas ruas até altas horas da noite, bem penteados, de roupas provocantes, com bronzeados magníficos, uma tentação para a vista e pouco dinheiro no bolso, capazes de atazanar os lares e opções sexuais solidamente definidas, compreendemos que envelhecer pode trazer morte às células cerebrais, mas desperta, sobretudo, uma grande inveja por aquilo que já não é possível alcançar com todos os arrebiques e toda a publicidade de eterna juventude contida na garantia de produtos milagrosos.

As nossas “ex-velhotas”, hoje mulheres maduras mas jovens de espírito, caíram na arriosca das clínicas espanholas. Quase que se consegue ouvir nos altifalantes da sala de espera “must be the season of the witch” cantado pelos Vanilla Fudge ou Donovan Leitch, enquanto que pelas traseiras carrinhas de valores levam os lucros para uma vidinha paparriba dos donos, felizes e menos enrugados, por certo. Se R. D. Laing estiver certo e nós não somos um mas três – como nos vemos, como os outros nos vêem e aquilo que realmente somos. Então, a indústria da estética explora a percepção que temos de nós próprios, para os outros, após os tratamentos, as pessoas continuam na mesma… só que mais esquisitas.

sábado, novembro 18, 2006

A geração “Portugal, Portugal”

Em 2004 vivemos o melhor tempo da nossa História, – bateu o também áureo período da chegada do Mário Soares de França e os subsídios de Bruxelas –, foi o ano do nosso contentamento e sobreaquecimento da alma lusa. Conduzidos por um novo Sá da Bandeira, no presente cenário o Scolarão da Selecção, não partimos para o planalto de Angola mas para o tecto do mundo. Estava um calor de assar caracóis ao ar livre. Incêndios acendiam-se por dá cá aquela palha. Fora decretada a retoma, formosa palavra, injustamente esquecida do vocabulário actual, que segura nos levava à fonte dos cântaros inteiros. Patrocinado por todas as marcas de cerveja Portugal deu mais um pulinho qualitativo.

Inebriados pela bandeira, o cachecol e o boné uma nova geração de lusitanos nasceu com o “Portugal, Portugal” na boca. Que gritam em todas e nas mais estranhas situações – nos concertos musicais pop ou “gulbenkianos”, nos engarrafamentos de trânsito, nas casas de fado, nas partidas de dominó e bisca lambida no Jardim da Estrela, durante a missa antes da hóstia, nas bichas à porta da FNAC para comprar o último Harry Potter ou nas inspecções para a tropa. Ouvimos este jucundo grito de guerra “Portugal, Portugal”.

Nesta nova ficção nacional Portugal passou de província espanhola, de buraco negro na Europa, de pardieiro onde um lugar no aparelho de Estado significava fortuna para si e para a família, a nação de valorosos e reconhecidos méritos, a exportar cientistas, investigadores, trabalhadores qualificados para as obras, padres, empresários e políticos de craveira para os quatro cantos do mundo, limpando aquela imagem de saloio enganado por todos, que Pedro Álvares Cabral deixara na Índia.

Depois de duas gerações para esquecer, – a “rasca” e a “dah” –, eis que surge no quadro idílico da retoma uma geração que, apesar do valor das propinas e nivelamento por baixo em todo o meio escolar, vai levar a nação ao esquadrão da frente no concerto das nações, que, talvez os americanos nos deixem viajar sem visto e distribuam de borla medalhas de ouro do Congresso aos nossos governantes – aquele garçon bem parecido que se enfiava entre o Wbush e o Aznar nos Açores, depois arrimadiço na Comissão Europeia, e… o sorriso novo do nosso ex-Ministro da Defesa e (da água) do Mar refulgente nas reuniões da NATO, mereciam mais distinção, para além do reconhecimento de familiares e amigos.

Com esta nova geração o universo está ordenado. Tal como nas antigas publicidades, tipo “um preto loiro e um branco de carapinha”, assim, também, colocar gravuras gregas num teatro do Porto não é normal. O normal é cada um no seu lugar. Em Portugal, gravuras portuguesas, de preferência de Foz Côa, sempre são mais decentes que uns helénicos de pudendas partes ao léu. Os novos lusos assumiram que a tendência para o disparate, que tanto atormenta professores e académicos, intelectuais e comentadores, não está no facto de existir um milhão de analfabetos, mas nos nove milhões que acreditam que sabem ler. Escudados no betão armado do saber transformam voláteis opiniões em verdades de vida ou morte – ou “mata mata”, na novíssima “foot-speak”.

Agora, entre a arejada classe política deste reino da tolice só há “aves de bom agoiro” e “novos do Restelo”, que preconizam o futuro brilhante e dão o exemplo. Os carros de alta cilindrada, o motorista fardado, os perfumes almiscarados, as roupas caras, as loiras pintadas, os restaurantes de luxo são estilo de vida moderna, tão necessários à boa eficiência e à rentabilidade no trabalho como as batatas e alho no bacalhau. Se queremos políticos que produzam temos que lhes dar condições. (700 euros como subsídio de alojamento aos deputados residentes fora de Lisboa é um pouco mais que o prometido ordenado mínimo ambicioso mas não chega a dois).

Uma nova mitologia se desenha no céu pátrio. As velhas Nossas Senhoras de tudo e mais alguma coisa que, tanto colorido davam à vida intelectual e cultural das cidades e aldeolas do país, têm um sério adversário no santo do Caravaggio. Este santo, que já foi visto na TV e ouvido na rádio por milhões, é reportado como grande milagreiro em encher estádios e a vender cerveja, que se houver coragem para ultrapassar o erro de D. Afonso Henriques ao dedicar estas terras a Maria, estamos prontos para um novo capítulo na História. Por sorte o novo infante descobridor, Madaílão de seu mui nobre nome, as dedicou a Scolarão. E, agora, esperamos tremedoiros que este as dedique ao santo do Caravaggio para hagiográfica rotatividade no paraíso terreno que nos espera.

A geração “Portugal, Portugal” acha-se bonita porque acredita na publicidade e na indústria do parecer para vender. Um pouco de gel Shock Waves da Wella transforma qualquer rapaz com problemas de pele num Cristianão Ronaldão. Estes novos portugueses atingiram o sentido do ritmo, batem palmas a compasso sempre que ouvem música, seja Mozart ou Marco Paulo, mostrando o seu ecletismo musical e cultura democrática como mandam as regras do sexto Império (onde já não é o mar que une mas a patetice). Todos passam por um casting como um ritual natural de passagem da adolescência para a idade adulta de uma sociedade laica, fértil em oportunidades, sem os nervos, choros e rezas a Nossa Sr.ª de Fátima da geração anterior. São crentes mas isso é outro departamento, não misturam as águas, o padre e o bispo continuam sendo os mestres-de-cerimónias dos acontecimentos da vida e os substitutos da figura paternal que desapareceu das famílias com a chegada do super-heróis da Marvel ao cinema. Os heróis da terra substituíram os heróis do mar, nacionalismo não falta nesta geração, amam a bandeira com pagodes em vez dos tradicionais castelos, cantam hinos de mão no coração em vez do Hino. São capazes de aguentar a má organização intrínseca das produtoras de espectáculos, em qualquer tipo de evento, sempre com o optimismo de que estão a cumprir um desígnio pátrio.

Temos sorte de viver em tempos tão gloriosos em que a quilha do barco português volta a sulcar as águas espalhando lusa idiotice pelo mundo como nos bons velhos tempos.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Vontade de Comer

Este texto reporta-se aos (talvez bons) velhos tempos do Santana Lopes como primeiro-ministro e onde Bagão Félix pontificava no ministério das Finanças. Decidi inclui-lo porque continua actual, os nomes dos actores é que mudaram, e teremos que esperar mais uma ou duas eleições para ficar a saber que apesar da febre reformista tudo ficou na mesma. O actual ministro das Finanças tem um ar menos padreca e mais boneco do Contra Informação que o Bagão, mas as consequências da sua ciência no percurso do país serão as mesmas, ou seja, daqui a uns anos estaremos todos a gritar aqui d’el-rei que me estão a roubar para “sustentabilizar” a Segurança Social, o Sistema Nacional de Saúde, o Sistema Público de Ensino, as Forças Armadas, a PSP, a GNR, a PJ, as autarquias, o Estado e outra coisa que entretanto apareça.

E, também, porque seria um crime de lesa trapos da memória não recordar aquele momento áureo do nefelibata Bagão Félix descendo à realidade e comparando o Orçamento de Estado com a casinha portuguesa. Aquele modesto primeiro andar a contar vindo do céu, ou o modelo de Raul Lino, ou um modern apartment no Parque das Nações, não importa, desde que o chefe de família fosse honesto e trabalhador e a dona de casa séria e arrumadinha. Para além disso, remexer no passado faz jus à única verdade histórica de que todos os países tiveram um passado brilhante. O problema reside na amofinação do presente, mas, no caso de Portugal, estamos certos que continuará a esgarabulhar para o futuro. O próprio primeiro-ministro de então, para não ir para a História como um paparreta, escreve livros para refazer a memória. Nada de novo Churchill fez a mesma coisa!

No novo reino da bandeira na janela, saído de todas as derrotas passadas, do isolamento internacional e do manjerico barato, algumas coisas teimam em não desaparecer. Uma delas, são os políticos potrincas que teimam em desgalhar o cidadão da pouca riqueza ou recursos que, porventura, alguma vez teve, insistindo em cobrar o grosso abadágio devido ao Estado, em nosso nome e para o nosso bem, mas que afinal não passam de alcoiceiros com um olho no negócio e o outro nas oportunidades futuras. Quando saem do Governo correm para o generoso úbere de um quadro administrativo numa empresa amiga. Mas enquanto passearam pelos corredores do poder reduziram-se a meros cobradores de impostos com ideias para criar outros novos.

Após anos a apertar o cinto a economia portuguesa não mexeu um milímetro na sua caminhada pela estrada dos tijolos amarelos para a “Terra de Oz”, da abastança, do vinho de casta e do milho para todos… julgam os mais distraídos. As classes altas continuam a ter bons rendimentos e os satélites que gravitam à sua volta fazem fortuna mostrando a robustez do liberalismo económico. Quanto ao resto da população culpa-se no darwinismo social o facto dos mais fracos não se sentarem à mesa farta das economias mais ou menos ricas.
O prioste das Finanças lusas apareceu em coloquial conversa – no mesmo género, desenvolvido até à excelência, pelo Prof. Marcello Caetano e o seu amigo Ramiro Valadão na RTP – mostrando como uma casa bem aspirada e arrumada, com cortinas de plástico cor-de-rosa e candeeiros a condizer, umas cadeiras sortidas e um aparelho de televisão, pode ser governada como o Orçamento de Estado. Se não houver dinheiro para sustentar tudo aquilo acaba-se na fila da sopa do Barroso. E, para o Estado, ainda é pior, pois a bicha no FMI é muito maior, dá a volta ao mundo. Esqueceu-se de dizer o laparoto ministro que o papel dos políticos nas democracias bi-partidárias é mais hebetar o povo do que resolver algum problema real, para isso existem as Leis do Mercado. Nunca ninguém viu um servidor público ser castigado pela destruição do nabiçal a seu cargo. Os políticos antes de ababalharem o seu discurso sobre nós deveriam ser obrigados a frequentar um dos cursos da Alexandra Solnado para verem a luz.
É verdade que não surge um economista digno desse nome desde John Maynard Keynes e as Universidades continuam a formar apenas técnicos de contas armados em intelectuais porque têm um curso superior. Não está fácil para as elaborações teóricas. Mas mesmo num país cheio de devotos incrédulos como nós, ficámos estarrecidos ao ver o “velho Cácá das praias”, agora chamado Carlos Ribeiro, num programa da TVI chamado “Levem Tudo Menos a Casa”, a substituir móveis e electrodomésticos velhos por outros novos, testar os conhecimentos do Portugal profundo e deitar por terra a “metáfora da casinha” do Sr. Ministro. Afinal “a casinha portuguesa” pode ser robustecida por um simples programa de TV.
Seria primário culpar o primeiro-ministro, um alcovita de renome… e proveito, reconhecido internacionalmente e que tanto nos orgulha. Ele é a nossa bandeira entre as mulheres (um Clinton à portuguesa). Nem duvidar da dedicação e sacrifício dos seus ministros. Um deixou trinta cargos para nos ajudar, outro perde mais de cem mil contos/ano por ter ido para o Governo. Homens assim só foram vistos durante a implantação da República. Desta abnegação, deste sacrifício desinteressado à res publica só aparecem uma vez num século. (No Governo de hoje são ainda mais ambiciosos ou mais comediantes. Falar-se na redução de 75% no vencimento do director-geral das Finanças para aquele génio da gestão manter o lugar é lol).

Se um quinto dos portugueses vive à beira da pobreza. Se existem 2 300 sem-abrigo em Lisboa e Porto. Se o nível de escolaridade é baixo. Se é o segundo país mais rural da União Europeia sem, no entanto, ter agricultura. Se quinhentos mil estão desempregados. Se quatrocentos mil passam fome. Se Lisboa está cheia de casas a cair. Se os ordenados são baixos. Nada disto será culpa dos políticos, que a bem da utilização da arte da oomancia, para encontrar novos caminhos, são capazes de pôr os ovos pelo país.

Homens competentes, profissionais de gabarito, que recebem elogios rasgados… dos seus colegas. Quando morrem têm direito a carpideiras e desfile, povoarão jardins e ruas com as suas estátuas e nomes, não merecem ser castigados quando se revelam uns perfeitos idiotas. Manda a boa educação nunca chamar “idiota” a um político, ele pode estar errado nas suas opções, ser mal aconselhado, pertencer a outra família política, ser inseguro nas decisões ou fraco de vontade mas nunca será um burro chapado. Se a sopa dos pobres tem cada vez mais adeptos, isso não significa que os portugueses tenham fome, o que têm é vontade de comer.

terça-feira, novembro 14, 2006

Barba rija
Algo de muito errado se passava na imagem que o país tinha de si próprio. Do país dos garanhões que comem todas, dos engatatões de esquina, dos maliciosos cantores brejeiros, das “camones” que invadiam as praias algarvias na demanda do santo machão, da potência sexual infinita. O processo Casa Pia veio trazer para campo aberto a homossexualidade subterrânea que percorre toda a sociedade portuguesa. Se a promiscuidade e a confusão sexual eram um traço das classes mais baixas, atascadas nos ex-bairros de barracas, o golpe militar aprilino e a derrocada da moral sexual repressiva, soltou-lhes as rédeas também nas classes altas. Diria uma possidónia velha tia de Cascais: “perderam a vergonha”.

Lembremo-nos da estrutura social no tempo do “homem das ceroulas e polainas”, (Salazar nos livros de História), com a separação de sexos nas escolas, as idas à catequese para apaziguar e moldar o impulso sexual, a protecção dos elementos femininos pela família que só abandonavam o lar paterno com o casamento, o sexo encarado como assunto do coração. Como consequência, a primeira experiência sexual dos jovens mancebos na idade da explosão hormonal era feita entre os seus pares, deixando um leve travo de homossexualidade na adolescência, que o casamento deveria apagar (julgava-se), mas a maior parte das vezes não apagou, levando os portugueses enquanto adultos a uma vida dupla – de dia bons chefes de família e de sucesso na sua profissão, e à noite condutores de automóveis caros, navegando as ruas à procura de parceiro, sempre um jovem, para relembrar as templárias delícias da sua juventude.

Toda a gente deveria estranhar o facto do homem português não perder uma oportunidade para se vestir de mulher. É no inevitável Carnaval, é quando a mulher não está em casa, são as carreiras no sacerdócio, são as cerimónias maçónicas, é no gosto por inventar confrarias, que todos os dias aparecem dedicadas aos vinhos, à chanfana, à pêra, ao croquete e à patanisca. Tudo é motivo para saltar para dentro de uma saia ou aproximado. Por isso, quando rebentou o “escândalo” Casa Pia só se espantaram as velhas que acreditavam piamente (e os padres sempre as enalteceram no Santo Marial), que tinham cumprido o seu papel sexual e proporcionado prazer ao seu digno cônjuge. Apesar de, nelas, a coisa tivesse corrido “assim, assim”, mas os sorrisos dos filhos compensaram todos os sacrifícios sofridos, escabujadas nos momentos de luxúria do legítimo esposo.

A perseguição levada a cabo nos últimos tempos contra a prostituição enquadra-se nestes velhos fantasmas dos portugueses. Não se trata apenas da “moderna Polícia” a pôr no teatro de operações os novos conhecimentos de investigação e procedimentos tácticos, adquiridos nas Academias de Ciências Policiais ou nos cursos intensivos para o Euro2004, ou mais uma operação para eliminar a corrupção e fuga aos impostos, ou as mães de Bragança preocupadas com o corte no orçamento familiar. Não se trata de uma questão política e emocional – de ser a favor ou contra a prostituição – pois a mulher deve ter o direito de vender o corpo a quem quiser (pelo menos, dentro da actual filosofia político-económica da “terceira via” não se percebe porque é que a mulher tem que dar o corpo de borla, em nome do poético Amor, quando tudo o resto foi privatizado para render lucros aos “empreendedores” e “investidores”). O que sucede é que aos bravos descendentes de Viriato atormenta, de facto, uma homossexualidade latente e que mais tarde ou mais cedo vem ao de cima – ou é assumida e o homem abandona a mulher e filhos e vai viver com outro homem, ou aparece noutra elaboração (de forma manifesta diria Freud) em comportamentos não sexuais como a perseguição policial às casas de alterne, ou torrar dinheiro nas marcas registadas nos centros comerciais, ou empolgar-se contra o árbitro nos estádios de futebol.

Bastava dar uma volta pelo estrangeiro para nos apercebermos, pelos olhares estranhos que nos deitavam, que a fama de esquisitos ultrapassara a linha da raia com Espanha. Claro que os nossos gays sempre tiveram sucesso em qualquer parte do mundo, condenados à emigração por terem uma imagem demasiado forte para um povo que gosta da dissimulação e da camuflagem, expandiam o nome de Portugal além fronteiras. (Agora devido à mudança de mentalidades ultrapassaram os playbacks de Gloria Gaynor nos clubes especializados nocturnos, são felizes no seu país natal, têm locais próprios de reunião à luz do dia e até espectáculos para assistirem, como por exemplo, as superproduções de Madonna). Mas este desvio da energia sexual para fins não-sexuais dá uma luz nova à frase mais repetida pelo povo do jardim sobre o Atlântico dependurado. Quando se lhes pergunta “o que sabem fazer?”, respondem sem pestanejar: “comer e beber”. Esta fixação à “fase oral” do desenvolvimento da sexualidade é uma fuga a comportamentos socialmente reprováveis e uma substituição aos seus verdadeiros prazeres. Por sorte todas as autarquias apanharam a febre da gastronomia e não faltam festivais para empachar.

Outro comportamento a-sexual mas decorrente da mesma situação foi o nosso saudoso Ministro da Defesa e (da água) do Mar, mesmo sem submarinos, enfrentar de peito descoberto, o terror da morte dos óvulos insuflados com o sopro de Deus. Como os nossos ratívoros marinheiros e as suas caravelas, saiu do conforto de São Julião da Barra para o mar não deixando poutar nos portos portugueses aquelas perigosas abortistas, que vinham de barco corromper a virgindade das nossas donzelas, incitando-as ao aborto, mesmo não estando grávidas. Felizmente, em Portugal, existem associações e instituições públicas presididas por homens que lutam pelos direitos das mulheres, o que vem acentuar mais o carácter feminino do homem português, pois ele é capaz de “vestir a pele” de mulher e compreendê-la melhor que ninguém.

A homossexualidade em Portugal não é um problema genético, ou de opção de vida, ou causado por uma mãe demasiado possessiva, ou uma excentricidade de uns perversos valdevinos que cirandavam pelos jardins de Belém. É uma situação normal decorrente de um problema cultural enraizado profundamente na evolução da sociedade lusa durante o século XX. Há muitos anos que o macho português de barba rija era motivo de chacota em todo o lado, consequência da carnalidade da “geração bolacha Maria e marmelada”. Veremos as consequências da virtualidade sexual na “geração Playstation”.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Becas e lecas

Existe uma zona de estudo, dentro das Ciências Humanas, pouco desenvolvida mas de extrema importância para compreender a nossa sociedade e a nossa posição dentro dela – chama-se “proxémia”e estuda o espaço e a disposição dos objectos (desde uma cadeira a um edifício) que nele fazemos. Podemos colocar a sua origem no antropólogo Franz Boas, o primeiro a sugerir que haveria uma relação entre linguagem e Cultura (e que as sociedades eram um todo autónomo com várias possibilidades de evolução). Mais tarde, o médico e linguista amador Benjamin Lee Whorf baseando-se nas teorias de Edward Sapir, de que o “mundo real” é em larga medida construído a partir do código linguístico dos diferentes grupos sociais, vai desenvolver a ideia de que cada língua contribui com uma parte importante na estruturação do mundo perceptivo dos que falam.

A nossa percepção do mundo exterior não é apenas uma representação automática, feita através dos órgãos dos sentidos, mas um trabalho de reconstrução executado pelo cérebro a partir de conceitos fornecidos pela língua-mãe. Ou seja, nós não vemos através dos órgãos dos sentidos, o cérebro é que vê, e a forma como vemos o mundo que nos cerca depende do meio cultural onde estamos inseridos. Ou de outra forma, um português, um inglês ou um japonês por terem uma língua materna diferente estruturaram a Cultura de forma distinta, e por isso não têm a mesma noção de espaço e consequente percepção do mundo. (Esta disparidade é mais perceptível nas línguas mais distantes de nós. Os japoneses têm o conceito “ma” que se pode traduzir por “espaço intercalar”. O espaço entre as coisas que nós nem reparamos. Na arte, Cézanne, Monet, Matisse, Degas, Sisley tentaram representá-lo pintando a luz. Fora disso fixamos os objectos e não os espaços entre eles).

O espaço não é um meio físico autónomo no qual nós estamos inseridos mas uma criação cultural – esta é a tese principal da proxémia. Se nas sociedades ocidentais o espaço foi estruturado a partir da vista, no mundo árabe foram o olfacto e gosto que procederam a essa estruturação. Por exemplo, os árabes ao falarem mantêm-se dentro da zona de cheiro do seu interlocutor, por isso, Saddam insistia nos vários banhos diários como sinal de civilidade do seu povo. Desta diferença cultural resulta ser quase impossível os americanos (ou ocidentais, herdeiros da filosofia grega) compreenderem os árabes. São dois sistemas culturais assentes em órgãos dos sentidos diferentes.

(Na nossa definição de “eu” incluímos o exterior do corpo, a roupa e uma bolha à volta que varia entre os 45 cm e 75 cm. Se um desconhecido invadir este espaço consideramos uma ameaça contra a nossa “pessoa”. Para os árabes o “eu” reside no interior e não pode ser tocado fisicamente através do exterior. Mas sim ideologicamente, por aquilo que eles consideram heresias, como as célebres caricaturas de Maomé. Talvez assim se explique a pouca importância que dão ao corpo que pode ser invadido, mutilado, torturado, que de facto não define a “pessoa”, como na nossa Cultura).

Todos conhecemos o baixo nível intelectual e técnico dos nossos juízes e advogados, e que os tribunais mais parecem uma casa de comédia do que um local de trabalho. As becas são mais lecas para programas infantis com marionetas. Mas são um exemplo concreto de como esta análise proxémica é um facto. De que o espaço não é um lugar puro e inocente que se apresenta aos nossos sentidos, mas uma criação nossa, feita com base nos pressupostos gramaticais e lógico-formais da Cultura onde nascemos, e que nos são dados a partir do momento que aprendemos a língua materna.

Se observarmos a disposição na sala de um tribunal dos vários operadores judiciais constatamos que o colectivo de juízes e o Ministério Público se colocam ao fundo da sala em lugar central, os advogados ocupam os lados, e de frente para os juízes ficam os réus. Esta disposição espacial não é produto do acaso, ou da necessidade de atafulhar pessoas numa sala escassa, nela estão expressas as relações de força e poder na sociedade portuguesa no que diz respeito à aplicação da Justiça. O facto dos juízes e o Ministério Público estarem dentro da sala juntos, em cima de um estrado, ao mesmo nível, significa que são a mesma coisa. Não há diferença entre eles, (apesar de em teoria os juízes serem os “avaliadores imparciais” e o Ministério Público o “acusador”), na prática são formados nas mesmas instituições, convivem nas mesmas salas, têm uma vida social conjunta, discutem as penas a aplicar a priori, e o espectáculo que se realiza na sala de tribunal é pois um pró-forma para justificar o vencimento.

Se repararmos num tribunal americano a única figura em destaque na sala é o juiz que está em posição mais elevada. Os advogados de defesa e o Ministério Público estão de frente para o juiz, ao mesmo nível no espaço, significando que têm por missão expor os seus argumentos em pé de igualdade, um defendendo o outro acusando. E o réu está junto do seu advogado revelando que existe uma ligação entre eles. Ora nos tribunais portugueses nada disto se passa pois o advogado de defesa é mais uma exigência da lei que uma figura activa.

Num tribunal português as provas da defesa são sempre secundárias e, a maior parte das vezes, nem chegam a ser avaliadas pelo pretenso “operador judicial imparcial”. O depoimento de um polícia, tem muito mais valor, do que aquele prestado pelo vizinho, a santa mãezinha ou o padre da paróquia, se apresentados pelo réu, por exemplo. Todo o poder está na prova da acusação e muitas vezes o juiz não tem a capacidade, nem o discernimento, para ver que tudo aquilo é uma boa montagem literária, mas que nada tem a ver com o universo jurídico, que deveria lidar com provas concretas e factos provados, e não com especulações filosóficas da procura da Verdade. A Verdade é uma questão para filósofos e não para juízes e advogados. Estes deviam preocupar-se apenas com o que pode ser demonstrado.

O que se passa nos tribunais portugueses é um problema cultural porque ninguém consegue viver fora da sociedade onde nasceu. Nas condições actuais defender-se num tribunal luso é uma pura perda de tempo e dinheiro. Vale e Azevedo aprendeu esta lição quando saiu do tribunal da Boa Hora, com sete anos e meio de cadeia para cumprir, e chateado porque a prova apresentada pelo seu advogado de defesa não foi considerada. E os arguidos do Processo Casa Pia, quando falam em apresentar trezentas testemunhas de defesa, vão ter uma surpresa.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Um azelha à chuva

Era uma vez… um país pequenino, com um povo muito atarefado, que enchia ruas e escritórios numa sinfonia de trabalho, alegria e felicidade, como uma colmeia na Primavera. Nada apagava o sorriso deste nobre povo, mesmo o mexoalho político era motivo de celebração e galhofa. Este prepóstero país, abacalhoado no gosto, com alguidaradas de sabedoria a escorrer dos quiosques todas as manhãs, não deixa de surpreender os mais desvelados. Há uns tempos, os mais atentos leram, no mesmo dia, duas notícias que, se dúvidas houvessem, poriam Portugal na senda dos mais avançados países do mundo.

A primeira dizia respeito às cabeçadas entre dois gestores na Caixa Geral de Depósitos que levou à intervenção do Ministro da tutela pondo ordem no revezo e deslocando o gado para outra pastagem. Como consequência, o Sr. Mira Amaral meteu a reforma… com os papéis entregues em mão na Caixa Geral de Aposentações. Claro que a mão não foi a dele. Pertencia à secretária particular. Nem dava muito trabalho, pois era só atravessar o Campo Pequeno, mas a vida a jacto dos gestores turbo não se coaduna com minhoquices burocráticas… e à tarde já estava com a sua pequena reforma de 18 mil Euros (3 621 contos) disponível na conta… podendo dedicar-se livremente a um futuro de… polquista, hirudinicultor, helicicultor, pescador de alto mar, criador de cavalos ou internauta num jardim público. Mas não foi o que ele fez. Em vez disso continuou a patinhar nos grandes tachos. Ultimamente, acostou ao Fórum da Competitividade e podemos vê-lo a perdigotar postas de pesada sobre bálsamos para endireitar a economia do país. Nem me preocupa saber quem lhe paga mais este complemento de reforma. Ele merece!

A outra notícia é mais seca, curta, anónima, e referia que na zona do Cadaval um emigrante morria de fome. Um desgraçado ignorado do “Estado social… mas em vias de privatização” que cometeu o erro de passar a vida a trabalhar em vez de ter entrado para um partido político ou de ter seguido uma anafada carreira no funcionalismo público.

Muitos dirão que o Sr. Amaral tem um cérebro privilegiado que lhe permitiu tirar um curso difícil e aceder a postos de grande responsabilidade. Que quem está na alta finança dá muitos lucros ao patrão e que as decisões importantes que toma justificam uma compensação choruda. Que são pessoas que geram muitos lucros para o país através da sua aguda inteligência e que dar-lhe 18 mil Euros é uma bagatela. Que no dia em que choverem Miras Amarais em Portugal sairemos para o pelotão da frente das nações mais ricas e avançadas deixando de vez para trás tarefas menores como servir cafés na Base das Lajes. Ou organizar jogos de futebol. Ou vasculhar por um bisavô nos Açores no passado dos laureados com o prémio Nobel.

Num país assolado por verdadeiras versões modernas de pragas bíblicas como a dos “padres cantores”, que assombram as ondas hertzianas nacionais, ou a dos “polícias escritores” que enricam as prateleiras da Biblioteca Nacional, é claro como água que o nosso futuro está na chuva. Numa chuvada de cérebros gestores que façam o que sempre fizeram, isto é, destruir as empresas públicas e esperar para ver qual é o próximo passo histórico do liberalismo económico (ou, a “terceira via” para os amigos mais íntimos).

Portugal nunca soube assumir compromissos ou tratados internacionais. O exemplo de Cabinda deveria vir à memória dos que aprenderam História no tempo em que havia mais escolas abertas. Mas quando nos tornamos tolos não brincamos em serviço, somos tolos a valer, perdemos todo o sentido da decência e honestidade intelectual. Subimos para cima de cadeiras e fazemos um triste espectáculo no fundo do palco. Quem não se lembra das velhas de cabelo pintado de loiro colado a laca, formando um belo cabeção, percorrendo as ruas em manifestações aprazadas que, ainda hoje julgam ter tido alguma influência na independência de Timor. Essa onda de “consciência política” que não se via desde o 25 de Abril e que aqueceu os corações dos indigentes das classes altas numa espécie de desígnio sagrado para preencher o vazio do seu quotidiano. Os portugas de curta memória não se lembram que, se não fossem as mulheres dos políticos americanos também falarem de política nos seus chás canastras, Timor ainda faria parte da Indonésia. E que talvez fosse a sua sorte.

Mas, Portugal continua um bom país para dançar aquela arte espanhola de bater com os pés no chão abanando os braços fazendo trejeitos com os dedos e comprar postais para mandar aos amigos In articulo mortis (“na hora da morte”).

segunda-feira, novembro 06, 2006

A quimera do ouro

Agora que Portugal encontrou finalmente a senda da glória, aquele povo de aspecto amacacado que no princípio do século XX, vestido de preto, descalço e cabeça coberta de xaile, via senhoras do céu aparecerem, dependuradas em árvores e rochas, ficou para trás na História. Graças a Deus, hoje, vestimos colorida urban wear e decoramos a cabeça com futuristas penteados tipo cabeça de Klingon – os inimigos confessos do capitão Kirk, no “Caminho das Estrelas”. Enfim, somos civilizados e bonitos, como aqueles personagens nos remakes da História, escritos pelo Moita Flores.

O “povo do banquinho”, (como era conhecido entre os diplomatas amigos), que tinha de recorrer a estratagemas artificiais e empolamentos históricos para parecer mais alto e chegar ao nível dos outros, (quais 15cm de saltos da castelhana princesa Letizia para alcançar o ombro de seu amado príncipe Felipe), inventou o meio de se manter sempre no alto, um verdadeiro ovo de Colombo intelectual que poderemos chamar: “efeito euro2004”. Um simples truque mental que consiste em auto convencer-se de que para a realização de determinada tarefa é necessária uma inteligência do tamanho do Airbus A-380. Concluída a empreitada com sucesso, e aí reside a novidade desta invenção lusa, não há forma de falhar porque, de facto, é uma tarefa tão banal que uma criança seria capaz de a realizar, lança-se foguetório e vivas aos possuidores de tão grande capacidade organizativa, espalha-se a ideia de que os outros povos a nós recorrem para conselhos e imitação. (O facto da estação de TV al-Jazeera se referir a Portugal como o país mais pobre e insignificante do Ocidente não nos deve preocupar e explica-se pela inveja que os realmente grandes provocam. Eles também dizem cobras e lagartos dos americanos e no entanto…).

O “efeito euro2004” é responsável pelo sucesso dos nossos empresários, gestores, investigadores, políticos, futebolistas, etc. que deixaram de ser uns perfeitos idiotas aos nossos olhos, para serem os heróis que faltavam numa triste realidade quotidiana de um povo vadio, incapaz de uma organização racional do trabalho, e que se esgota em concêntricas voltas sem ir a lado algum. Basta entrar num tribunal e verifica-se que os famigerados atrasos na Justiça não se devem à falta de juízes ou funcionários judiciais mas porque, simplesmente, os que lá estão não sabem trabalhar, e o mesmo nas repartições públicas, escolas, empresas, obras, hospitais, notários.

Esta nova atitude lusa tem-se revelado ideal para a criação de uma nova auto-estima que irá atapetar a era Cavaco. Recreando através do “efeito euro2004” mitos antigos, entramos no novo século. E ficaremos melhor nas fotografias que os nossos avós e bisavós. Bem… o Quinto Império é melhor esquecer, porque com dois submarinos apenas não podemos partir para conquistas. Mas o novo D. Sebastião está entre nós, é de carne e osso, caminha e ri folgazão, mais maduro e ajuizado que o primeiro, (até já se reproduziu e tudo), e pressagia reputação mundial para Portugal sem ser preciso conquistar as arábias. Não há aparições como em Fátima, (que se tornou num negócio venal para a Igreja Católica), mas o vidente de Celorico de Basto aquece as nossas peticegas necessidades de orientação e sugere de onde poderão vir milagres. Quem se lembra do brilho nos seus olhos quando falava do jovem Martunis? Que na distante Indonésia com a sua camisola da Selecção Portuguesa de Futebol, (falsificada na China), sobreviveu ao maremoto e comoveu um povo crente nos poderes mágicos do tecido sintético, que lhe ofereceu o equipamento inteiro para assim o proteger de catástrofes futuras. Novas políticas florescem em solo pátrio com direito a figurar nos manuais estrangeiros como, por exemplo, a “jardineira” na Madeira. Com uma fórmula muito simples: um político desbocado + um povo agarrado à batina do padre = milagre económico. É uma brilhante legatária do “rotativismo” (a alternância no poder entre os partidos Regenerador e o Progressista) ou da “viradeira” (como era chamada a política de D. Maria I). Portugal exporta e produz para consumo interno políticos bushistas com prodigalidade no falar e consistência nas ideias, formados em Ciência Política nessas Universidades que privam de perto com o poder, e cuja sapiência trará de volta a confiança para o seio do povo.

Esta grandiosidade que vivemos nos dias de hoje requer mais dinheiro e aguardamos com serenidade que o Governo seja célere no aumento dos impostos. Temos de alimentar esta fogueira de criatividade que lusificará o planeta outra vez. (Temos de partir ovos para fazer omoletas enquanto o fogo está aceso). E talvez não seja demais lembrar o afortunado aforismo: “se os impostos são razoáveis, ninguém vai pensar em evasão fiscal. Mas se o Estado fica com cerca de metade dos rendimentos, então, nesse caso, é moralmente justo fugir aos impostos”. O seu autor não é Sir Robin de Locksley (vulgo Robin dos bosques) ou o Zé do telhado. É de alguém menos romântico e mais prosaico, o magnata da televisão, Silvio Berlusconi quando era primeiro-ministro de Itália.

sábado, novembro 04, 2006

Habituem-se


O futuro da Democracia é o Estado policial. E na evidência deste facto só temos que nos habituar. É que nem podemos dizer que se estão a dar passos tímidos nesse sentido. Eles são longos e cadenciados como numa parada militar na Coreia do Norte… mas em formato benfazejo desejável. Mais do que um regime político, a Democracia tornou-se numa espécie de marca registada que se exporta para todo o lado como uma bebida gaseificada carregada de cafeína. No quadro mundial actual provou ser tão útil como um exército poderoso para impor uma ordem económica através de uma via política. O objectivo é sempre o mesmo – o domínio do mundo. Se um país tem algum interesse económico ou estratégico-militar envia-se dinheiro e especialistas em contestação organizada para implantar a Democracia. O esquema nem é novo e funcionou às mil maravilhas no Portugal aprilino quando Frank Carlucci desembarcou com a mala do dinheiro. Ou na Polónia do Lech Walesa de Gdansk, com o Vaticano de João Paulo II a servir de placa giratória do dinheiro. Mais recentemente o processo, com as suas inevitáveis adaptações, deu bons resultados na Sérvia, na Ucrânia, na Geórgia, e no Líbano (antes dos céus manarem bombas israelitas).

E os regimes emergentes serão democracias? Claro, desde que estejam do nosso lado, são democracias indubitavelmente. Veja-se os paradigmáticos casos de Putin e Musharraf, seria impossível encontrar figuras mais democráticas que eles. O povo terá de esperar por melhores dias para entrar na História. Apesar de Karl Marx ter tentado espremê-lo lá para dentro, por enquanto estamos na democracia dos líderes. Eles surgem iluminados em luz eléctrica, debaixo dos focos da clarividência, e pairam em carismática sabedoria por cima do povo, que se atontou nas últimas décadas. Tanto lhe pediram para votar que o cérebro foi-se com o papelinho dobrado, para dentro da urna? Para o bilhar grande? Para alguma ETAR? Difícil dizer. O espectáculo é o mesmo em Portugal ou nos Estados Unidos. Vota-se por convicção clubista, a escolha do partido (ou de uma figura para ocupar um cargo) é emotiva e não racional. Depois espera-se que as coisas melhorem. E, nisto os portugueses são de se lhe tirar o chapéu, nunca perdem a esperança (nem mortos).

Um conceito original surgido na guerra do Iraque foi o de Democracia Musculada. Ou seja, liberdade mas não muito, o cassetete complementa o voto. Apesar do pitoresco da expressão, a realidade é que as nossas sociedades irão desembocar numa liberdade vigiada e controlada. As polícias, dos mais variados aspectos comportamentais, recrutam cada vez mais efectivos e são equipadas com tecnologia de ponta (a determinados níveis mesmo secreta). As leis e o Direito adaptam-se para legalizar um novo statu quo. O que era ilegal passou a ser permitido em nome de um valor mais importante que a Liberdade e que a esta se sobrepõe – a Segurança. Surgem engraçadas teorias como o “Direito para amigos” (os que ameaçam a nossa segurança, mas curam-se com uns tempos de cadeia ou uma execução institucionalizada, nos locais onde professam o cariz revivescente da pena de morte) e o “Direito para inimigos” (os que cospem na nossa segurança e a cadeia ou a pena de morte não chegam para a sociedade cobrar a sua vingança) – teoria saída da cabeça de Günther Jakobs, esse revisor de Rousseau, Kant, Fichte, Hobbes, que considera que certos indivíduos ao cometerem actos inomináveis quebram o contrato social e o consequente direito de cidadania, logo podem ser tratados abaixo de cão. E quem escolhe e define os inimigos? Ora, quem havia de ser? Os nossos líderes. E alguns, como o Sr.Wbush, têm-nos bem definidos na sua prodigiosa mente. São os evil ones. (O toque religioso no discurso é de melhor assimilação do público em geral e dos penalistas alemães argentados de filosofia em particular).

São os famigerados terroristas que despoletaram um negócio de futuro, associado a tudo o que seja segurança, desde instalações de sistemas de vídeo, cursos de defesa pessoal ou como reagir em caso de rapto. E ao mesmo tempo aceleraram a mudança de valores que pautavam as sociedades ocidentais. Esta mudança começou a dar os primeiros passos com a necessidade de controlar grandes aglomerados de pessoas (cidades, manifestações ou estádios de futebol, por exemplo). Com a actividade terrorista deste início de século tornou-se o objectivo e a razão de ser dos nossos líderes. A Segurança passou para valor principal ao qual a Liberdade, Justiça e Solidariedade, estão subordinados. O Estado moderno nasceu. Ao povo dê-se pão e circo enquanto se instala o novo admirável mundo novo.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Alice no país dos maravilhados


Os portugueses estão acostumados a receber ordens. Sejam espirituais – quando a realidade se mostra dura e crua, o corrupio para a batina dos padres não pára e a marcha dos andores enchem em sofridos ladairos as ruas de cidades e vilórias. (A noção de que a natureza pode ser dominada por gestos rituais constitui o ponto mais elevado do pensamento científico português). Sejam físicas – a produtividade baixa não é um problema de formação dos trabalhadores ou incompetência dos empresários e gestores, mas a falta de chicote nuns e noutros.

A experiência da emigração deveria servir para tirar as devidas lições. Os portugueses a trabalhar em Portugal são uns calaceiros, uns chico-espertos sempre na esperança de enganar o próximo e embornalar mais uns trocos. Mas chegam à Suiça para labutar num café, transmutam-se em exímios empregados, correm que até gastam os sapatos. A diferença está no supervisor, que faz parte das casas suíças, que não lhes dá tréguas para mandriar. Os empresários portugueses nunca perderam a mentalidade de pucareiros e só sabem produzir a partir de salários baixos e almadraques do Governo. Quando a mão-de-obra sobe, ou o Governo retira o tapete, lá vão eles à procura de um proletariado que se contente com menos, e um Estado magnânimo nos subsídios. Os nossos gestores, que trabalham no estrangeiro, regressam de férias à amada Pátria, envoltos em espampanante frufrulhar de rendas e prestígio, desdobram-se em entrevistas aos Meios de Comunicação Social e cerimónias de elogios, enquanto que nas empresas onde trabalham não passam de meros funcionários, que nem pela rapariga das fotocópias são desejados.

Uma nação valente de empreiteiros que retalham o país com alcatrão e o enchem de cimento e betão, sem pensar o futuro dos transportes nem as regras a que obedecem as deslocações das pessoas, sem pensar nas alterações que isso trará para o clima, que primeiro pinta os traços nas estradas e depois coloca o alcatrão. Que é incapaz de planeamento e organização, tem o seu futuro traçado. O povo viverá agarrado à crendice no bom estilo da falecida intrujona de Fátima (e santa por certo), em que a fé dará a bonomia e paz de espírito necessários até chegar a hora da morte. Ao Estado caberá o papel de preboste, buraco hiante, sedento de dinheiro que nunca será suficiente, carregando nos impostos e combate à evasão fiscal, angariando fundos sem saber a sua finalidade. (A única finalidade no horizonte é o esbanjar puro e simples como tem sido feito até hoje. Só que agora os portugueses querem grandes obras. Já não lhes chega o fontanário e a casa do povo. Exigem pontes e centros culturais. Ficaram mais caros a quem paga impostos).

A única luz ao fundo do túnel como sempre vem da estação pública de televisão ao programar para as noites de Domingo o Gato Fedorento antecedido pelas jermiadas do vidente de Celorico de Basto. Quem foi educado visualmente no cinema dos falsos raccords de Jean-Luc Godard, não encontrará nenhum salto de imagem, na passagem do programa do professor universitário, para o dos espirituosos pais do “cunami”, ambos são engraçados, ambos divertem. Talvez o professor provoque mais risota, a sua facúndia invejável, aquele ar de eterno catecúmeno a abanicar os corredores do poder, que ele bem desejaria de gatinhar, mas que tem de se contentar em soprar com o vento da garganta, faz rir, lá isso faz rir. Pelo menos antes de Boliqueime ter chegado a Lisboa.

A não ser que este pernóstico Governo que vem resolver os problemas do país, logo de chofre, na tomada de posse, com a proposta da venda de aspirinas (ou de RU 486) nas mercearias do Sr. Belmiro, nos cure a dentalgia de oitocentos anos com carradas de piadas do mesmo calibre. Os prenúncios são bons. Aumentos, sob pretextos de maravilhar, para arrecadar mais carcanhol – como ordena o FMI e sua velha tia provinciana, a Comissão Europeia. Os vaticínios dos profissionais e comentadores da política são ainda melhores. Ecce Homo disse Pilatos ao apresentar o Cristo flagelado e nós poderemos dizer perante empíreo futuro: “eis o peixe, freguesa!”. Há sempre vantagens em viver num país sem espelho, as Alices não se perdem no seu caminho, e os coelhos vão para a panela. E quão glorioso é este futuro à porta da toca.