Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

terça-feira, outubro 31, 2006

U2 Reloucado


Os jovens portugueses são vistos como o melhor trunfo para uma bem nacional mudança na continuidade. Sem fazerem esforço algum prometem prosseguir a lástima de país que os seus antecessores deixarão em herança. Ultrapassando as discussões académicas de que em Portugal não se pode falar propriamente da existência de jovens, mas, de velhos com pouca idade, a neófita prole não deixa de surpreender pelo obscurantismo de ideias, disfarçado em nefelibata atitude. Sendo de facto uns cabeças ocas passa-se a imagem comercial de que são uns cabeças no ar, para sorte e contentamento de todos os comerciantes, pois, os jovens lusos são uns consumidores exemplares, percorrem de olhos vendados a burundanga das superfícies comerciais à procura do último mexoalho para adubar a sua decepcionante incapacidade para viver, projectando nas promessas de felicidade, associadas pela publicidade aos objectos, a sua natural vontade de existir. (Como seria bom adquirir, no acto da compra, a exultação impregnada na lata de Coca-Cola, ou a liberdade da consola NintendoDS, ou a classe do casaco Armani, ou a ataraxia dos buracos de Filipinos, ou o sentido de humor Super Bock, ou a pele fresca da Nívea, ou a saúde Danone, ou o acordar com uma mulher bonita dos cafés Delta, ou conseguir com o cartão American Express, ou saltar de pára-quedas directamente na casa que se procura depois de clicar bpiimobiliario. pt no laptop, ou …).

A Europa tem dificuldade em absorver os jovens portugueses. Excepto para rezarem na comunidade Taizé, pouco préstimo lhe encontram. Nem para fazer camas ou colocar tijolo nas obras servem como os seus papás antes. E o que vemos nos dias de hoje? A geração “Portugal, Portugal”, oriunda do Euro2004, enganada pelo marketing político nas suas reais capacidades, num gracioso gesto, dormiu dois dias numa bomba de gasolina, para garantir ingresso em mais um dos milhentos concertos de música pimba, que se realizam todos os anos nos arraiais, organizados pelo padre da paróquia, pelo país fora. (Se a fome era música é só estar atento aos cartazes na porta da igreja). Desta vez não, dirão os fãs, este grupo não é desses. Disseram-lhes que os “Udois” tinham qualidade, que eram bons, com consciência política, humanitários, ecológicos e tudo. E todas as outras modas do momento, que servem de paregórico aos desejos de ser actuante numa sociedade em que a única liberdade garantida que temos é… a de ir ao shopping. E os jovens, que de espírito crítico, nicles, acreditaram. Os querubínicos jovens pegaram nas cadeiras e nas mantas, num frio de rachar, dormiram dois dias ao relento para assistir ao correspondente irlandês do Tony Carreira (ou melhor, do Toy dos solos à Van Halen).

O gosto pelo pimba atravessa todas as gerações, mas fixou-se agora nos jovens que ensaiam os passos dos seus pais (que gostavam de Marco Paulo e Dino Meira, e constituíam aquela temulenta turba que dançava de braços no ar, e, ao som da rabeca e do acordeão, viravam o baile). Mas, a sacramental irreverência da juventude virou-os para outro lado, querem viola eléctrica e unguinoso som de amplificador. São modernos, p’ra´ frentex, distantes do xaboco e pouco urbanizado progenitor, e abanam o corpo encimado por uma cachimónia vazia. Nem lhes passou pela cabeça que, perante as condições péssimas que lhes ofereciam para adquirir bilhetes por uma exorbitância absurda, a atitude mais correcta seria, pura e simplesmente, recusar-se gastar o dinheiro. (E desta forma obrigariam os empresários a trabalhar melhor para a próxima vez que se metessem a organizar espectáculos).

Já que os empresários portugueses não têm capacidade para organizar coisa alguma (nem casamentos e baptizados), compete-nos a nós, os consumidores, sermos mais exigentes. A qualidade e os preços baixos não surgem da concorrência (como dizem) mas da atitude consciente dos consumidores que detêm o verdadeiro poder no seu bolso. Enquanto existirem consumidores passivos, os empresários continuarão a descarregar no mercado os dejectos da sua suinicultura. Veja-se o exemplo dos festivais de Verão. Uma dor de alma para tirar o dinheiro aos tolos e impingir-lhes serviço de terceira qualidade. A publicidade e os que vivem da crítica musical (e têm entrada na zona VIP criada de propósito para eles produzirem aperaltada prosa) encarregam-se de dourar a pílula e apresentá-los como os momentos mais importantes da nossa vida. Para esta imagem ficar no imaginário contam com o álcool e a ancestral falta de inteligência dos jovens portugueses. (E no ano seguinte lá estão caídos outra vez a serem mal servidos e maltratados).

Por seu lado, Paul Hewson - que muito lhe falta para ser Bono Vox - é bom para lengalengar no Fórum de Davos ou servir à mesa na sua natal Dublin. E, se os fãs dos “Udois” lhes querem prestar uma verdadeira homenagem, o melhor mesmo é formarem uma confraria, assim sempre poderiam vestir saias (ou aproximado) sem ser no Carnaval. E, por tabela, cumprem o único desejo do homem português que perpassa todas as idades, ou seja, enfiar-se num vestido por tudo e por nada.

domingo, outubro 29, 2006

Ui! Que medo


Desde primevos tempos que o medo é a arma usada pelas classes dominantes para manterem poder e mordomias. Exércitos e polícias são eficientes em tempos conturbados quando não há pão e é necessário impor a razão. São a face repressiva visível (e sentida no corpo) do Poder. Para os subversivos ou recalcitrantes da ordem envia-se a baioneta e o cassetete, a paz desce sobre as cabeças partidas, e a sociedade volta ao seu normal funcionamento. Com o passar do tempo as sublevações ou revoluções mais importantes adquirem direito a fornecer motivos de souvenirs para turista (porta-chaves, t-shirts, canecas) e outra memorabilia que as pessoas gostam de coleccionar (a pistola de Trotsky, o paralelepípedo de Cohn-Bendit, o cravo de Otelo). Os belos ideais começam com uma afronta ao poder estabelecido, levam um tratamento da cavalaria ligeira, e acabam nas prateleiras do free shop no aeroporto.

O Cristianismo deu, pelo menos, duas importantes inovações à Humanidade no âmbito da ciência de controlo das pessoas. A primeira foi a ideia de Pecado, conceito que não existia nas religiões pagãs, e a necessidade de existir alguém mandatado para o absolver, estabelecendo o poder absoluto do padre sobre o cidadão comum. A outra foi manipular o medo para dominar as pessoas.

Quando Átila varria a Europa a ferro e fogo, aos cristãos restavam apenas duas opções: escravatura ou morte. A defesa do território estava a cargo do Império Romano. O general romano Flavius Aetius, com a ajuda dos Visigodos de Teodorico, conseguira travar a primeira invasão huna, para os lados da actual Paris (batalha de Chalons), derrotando Átila. Na segunda invasão o Império Romano já não existia. A cidade de Roma era um monte de ruínas e ratos. O imperador mudara-se para Ravena anos antes. Os desentendimentos e a corrupção cresciam entre as classes altas. E Aetius não conseguiu reunir um exército para enfrentar mais esta ameaça. Entra em cena o Papa Leão I que faz um brilharete ao negociar com Átila a interrupção das pilhagens em troca de uns cofres de ouro. O guerreiro huno aceitou, o Inverno estava à porta, e deslocar exércitos na Europa de antanho por caminhos de lama era impraticável. De regresso aos campos da Hungria, Átila casa com Ildico e morre na noite de núpcias. A terceira invasão nunca se deu. O Papa Leão I, que na época nem era a figura mais importante da Igreja, passa a ser visto como o salvador do Ocidente e estabelece definitivamente o poder papal de Roma sobre a cristandade, derrotando a concorrência e… dando início à Idade das Trevas (ou Idade Média).

Com o poder dos Papas surge o primeiro medo – as feiticeiras e bruxos. Incentivava-se a perseguir e a queimar tudo o que parecesse estranho à visão cristã do mundo. O medo da fogueira manterá a normalidade social no Ocidente. Os anos passam em velocidade de cruzeiro quando, a revolução francesa, o iluminismo alemão, as filosofias materialistas e a interpretação científica do mundo pela britânica Royal Society, reduzem o poder que a religião tinha como cimento social. Foi preciso criar um novo medo para unir as pessoas e de Leste surge outra ameaça, aquela que prometia acabar com as desigualdades sociais (mais tarde saber-se-á que sem desigualdades não há riquezas nem ricos). “Um novo espectro paira sobre a Europa – o espectro do comunismo” – escrevia Marx na abertura do “Manifesto do Partido Comunista”. Desta vez sob a batuta da potência emergente das duas guerras mundiais – os Estados Unidos – o Ocidente tinha o seu inimigo – os comunistas. Durante anos justificou alianças entre líderes e orçamentos, dinamizou a economia, ocupou os serviços de segurança e armamento, e o medo levava as pessoas às urnas (pois os regimes tinham mudado para Democracia onde é suposto existir liberdade de escolha).

A queda do muro de Berlim vem acabar com este estado de graça. Volta tudo à estaca zero. Sem medo as pessoas não reclamam nem respeitam a Autoridade. Esta tem que ser desejada. O velho truque do Cristianismo da coação interior estava a esboroar-se. Identificou-se outro flagelo e um novo inimigo – os traficantes de droga. Durante pouco tempo serviram de papão do Ocidente. E deu trabalho aos serviços secretos em risco de desemprego por falência do medo comunista.

O medo criado por esta ameaça estava a dar bons resultados quando a droga (a heroína principalmente) começou a atingir os filhos dos ricos. Mas não era aquele medo que fizesse as pessoas exigirem linchamentos. (Só não queriam ver indivíduos esqueléticos e seringas nas ruas). Para o Estado democrático era premente alimentar um medo mais absoluto – eis que surgem os terroristas. Os líderes andam satisfeitíssimos, as pessoas embaladas pedem mão pesada para tudo. Pena de morte é pouco. O Direito, as liberdades individuais, os direitos humanos, o direito à privacidade, são patranhas que ninguém deseja. O Estado finalmente gere o medo ideal, aquele que permite fazer tudo e ainda por cima com o aplauso geral. O gosto pelo “sangue” (no sentido literal e metafórico) sempre foi uma particularidade bem enraizada na alma popular. (Para quem se lembra da História, nos tempos da guilhotina as pessoas disputavam os lugares perto do cadafalso durante as execuções para serem salpicadas de sangue).

Entretanto, as desgraças que vão sucedendo um pouco por todo o lado, primeiro são das pessoas, depois são dos políticos que se passeiam em pomposas cerimónias com coroas de flores, marchas militares (ou paramilitares) e toda a parafernália do Estado moderno (observe-se o que vai suceder com as datas de 11 de Setembro nos Estados Unidos e 11 de Março em Espanha).

sábado, outubro 28, 2006

Cacetada da polícia


Todo o cidadão comum é um criminoso. É um facto. Mesmo aquelas velhas desdentadas perdidas no Portugal profundo, que são o sustentáculo moral e o postal ilustrado do nosso país, e que acreditam piamente no Senhor e na imaculabilidade das suas vidas, não podem cantar de galo e atirar pedras porque, um dia, quando menos esperam, podem vir a ter problemas com a Justiça. Temos de concordar que os portugueses esforçam-se para serem homens de bem. Para o conseguir, em vez de trabalhar, rezam. Rezaram para que Portugal ganhasse o Euro e a Grécia fez a festa. Rezaram para que chova no Verão e não caía uma gota, só fogos infernais. Rezaram para que a enxurrada do Inverno não lhes levasse os tarecos e caves e primeiros andares inundaram. Rezaram para que o Papa fosse imortal e Deus leva-os inexoravelmente. Acautelem-se que as coisas estão a mudar. Não se pode confiar com certeza absoluta que se levou uma vida de acordo com as leis de Deus e de César. Quando menos se espera a bota do polícia pode deitar a porta abaixo por uma razão anódina. Uma multa, uma carta anónima, um forte indício de crime, um engano, qualquer motivo poderá causar embaraço ao cidadão comum. (E depois de estar emaranhado nos fios da máquina policial e judicial dificilmente se sai sem danos incalculáveis. Mesmo indo para a Roménia trabalhar em projectos da União Europeia).

Os velhos tempos do polícia que respondia por “Sr. Guarda”, semi-barrigudo, mal pago, de músculos enferrujados, que tinha de complementar o vencimento com biscates a verificar boletins do totobola na Santa Casa da Misericórdia, estão enterrados. Estamos nos tempos modernos dos “Srs. Agentes”, bem equipados, com especializações em tudo e mais alguma coisa, formação liceal, musculados, bem remunerados, voluntariosos, com a cabeça cheia de filmes americanos, atiram-se aos maus com ganas. A segnícia evaporou-se das esquadras, mostrar serviço é preciso, mesmo com os naturais excessos de uma profissão que está no limite do legal e do ilegal. Os fins justificam sempre os meios. Só os poetas tísicos ou os idiotas é que pensam o contrário.

Décadas de violência policial tiveram como consequência a necessidade de autodefesa das pessoas. É o princípio básico da mecânica clássica de acção-reacção, (a uma acção corresponde sempre uma reacção), que toda a criança deveria aprender na instrução primária juntamente com o seu miraculoso inglês. Desde o golpe militar de Abril74 que a impunidade da polícia se foi cimentando. Espancamentos, torturas, mortes nas esquadras, prepotência gratuita e abuso de poder nas ruas. E os visados sem nada poderem fazer, excepto, comer e calar. Queixas para os tribunais envolvendo forças de segurança são perda de tempo e dinheiro. A palavra de um agente da ordem é inquestionável. Ao passo que um criminoso mente com quantos dentes… deixou no chão da esquadra.

Os fenómenos da auto-mutilação e do suicídio tornaram-se o dia a dia de um posto policial. (Os criminosos atiram-se contra as paredes e pelas escadas abaixo e enforcam-se quando o “Sr. Agente” está distraído). Portugal, prolífero de especialistas em psicologia, nem um se dedicou ao problema sugerindo soluções. Fizeram o que fazem todos os especialistas portugueses, isto é, assumiram a postura tancredo (sorte do toureio em que o toureiro evita a investida do touro permanecendo imóvel). Os peritos portugueses são muito respeitados pela capacidade de produção de ideias, habilidade de salão muito em voga nos meios universitários, depois sentam-se à espera que passe o tempo ou, então, que venha uma teoria numa revista estrangeira para poderem imitar e ter credibilidade. (Lembram-se de como o filme “Amor de Perdição”, do criador desse género absurdo e ilógico chamado “cinema sem movimento”, Manoel de Oliveira, foi primeiro descoberto pelos críticos franceses e só depois aplaudido pelas penas e esferográficas lusas? Nos outros campos das artes e da ciência passa-se exactamente a mesma coisa).

Como consequência do princípio acção-reacção, a violência na sociedade sobe em espiral, para enfrentar a força e a arbitrariedade da Polícia, as pessoas reagem com meios semelhantes aos das forças de segurança. A humilhação de ser enxovalhado numa esquadra, que antigamente era sofrida com resignação e mercurocromo, despoletou na nova geração o desejo de retribuição e vingança. E a força combate-se com a força. Surgiu a necessidade de recorrer a armas de fogo para equilibrar a parada. É a lógica da guerra judaico-palestiniana importada para os nossos bairros. Olho por olho, dente por dente.

Por isso, humanizar as esquadras é uma urgência. A presença de advogados e psicólogos nessas instalações elevará o nível do vocabulário das conversas casuais sobre telenovelas e futebol, porque no quotidiano cavaqueio estará presente um licenciado. É um grande melhoramento, mas não terá outro efeito, pois estes especialistas seriam mais uns funcionários públicos, mal preparados pelas universidades, receberiam o ordenado no fim do mês e não perceberiam nada do que se passa à sua volta. A solução pode ser mais simples. É preciso reformar as estruturas arquitectónicas das esquadras para precaver acidentes que são interpretados na mente criminosa como uma agressão à sua pessoa e desperta o desejo de vingança. Proteger as escadas para os presos não caírem, os corrimões e as paredes para não baterem com a cabeça, retirar vigas que possam favorecer o suicídio, trancar os armários para que não entrem (e o “Sr. Agente” ter que dar pontapés para o tirar lá de dentro), colocar interruptores para desligar as luzes e toda uma panóplia de pequenos ajustes que qualquer Siza Vieira pode resolver. Assim, a violência baixará e nem será preciso gastar muito dinheiro.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Os secos e os enxutos


Manifestações de polícias são coisas tão estranhas como os donuts sem buraco, ou os hambúrgueres quadrados, ou a música ligeira. É estranho mas há. E quando são realizadas pela Polícia de Segurança Pública causa espanto e pavor. Mas, num país em que os programas de maior audiência televisiva são patuscas telenovelas e estultos reality shows, então, tudo é permitido, tudo é desejável, tudo será louvado, inclusive, a proliferação no canal público de televisão de multíloquos comentadores políticos, (um é demais, dois são uma multidão), para embetesgar o Rossio e, tornar a enigmática realidade que nos envolve, clara como o desfecho de uma aventura do Tintin.

Por mais enxadas que se poisem. Por mais cursos superiores que substituam o trabalho no campo. Por mais cosmopolitismo que se respire. O lerdaço povo português permanecerá rural na alma. Pacóvio na atitude e citadino no vestir. Flausinas e melcatrefes brilham na estranja em áreas tão díspares como o desporto e a matemática, a física e a moda, a economia e a construção civil, criando nos que ficaram dentro fronteiras sentimentos de capacidades para realizar grandes factos como, por exemplo, derrabar um leão, encontrar caminhos para a Índia, construir super-computadores ou descobrir a cura para a onixe. A idiossincrasia portuguesa requer que no meio do moral elevado surjam aqueles que nunca estão satisfeitos, que exigem do Ministro, do Governo, do Estado, do ar, outras condições que supostamente os farão trabalhadores exímios e cidadãos felizes. É uma atitude mais fácil do que ter que admitir incapacidades genéticas.

Nestes democráticos tempos cabe às forças de segurança virem lamentar-se no rosário do costume. No choradinho fadista português. Estamos mal preparados, mal vestidos e mal armados. E que a lei protege o criminoso, que nós estamos desamparados, ai de nós, ai de nós, quirieleisão!

A realidade é outra muito diferente. O celebrado trabalho técnico-policial sempre foi o espancamento e a tortura até à confissão (para poder continuar a investigação e não para apresentar em tribunal). Depois, não há nada a perder, se não se consegue o que se pretende, manda-se o suspeito embora com o papinho cheio. A técnica policial também recorre à colocação de provas para incriminar determinado sujeito em que recaem “as fortes suspeitas” mas que não se consegue agarrar de outra forma, ou então para remover um pobre diabo de um determinado lugar e fazer um favor a alguém. A intimidação e a manipulação sistemática de testemunhas (ou arguidos), é outra técnica banalíssima, que até vemos advogados na TV a considerarem normal aproveitar a ignorância do comum mortal nas ciências jurídicas para lhes extorquir informação. O assassínio, quando as coisas dão para o torto, também aparece como uma técnica de recurso, depois, é retocado como excesso de zelo. Para todas as suas diligências a Polícia sabe que pode contar com a conivência dos juízes. Quer por manifesto desconhecimento da situação a que são chamados a se pronunciar. Quer por puro laxismo e preguiça. Os juízes optam pela visão da Polícia e do Ministério Público e mandam para a cadeia indiscriminadamente (para não incorrer no risco de deixar um criminoso em liberdade. Quem acredita na lengalenga que todos são inocentes até prova em contrário, deve deixar de ver filmes americanos).

O polícia português é aquele que não sabe que uma shotgun disparada à queima-roupa é mortal, mas faz manifestações por melhores fardas, melhores armas, leis mais duras e melhores condições de trabalho. Inteligência, ninguém pede, todos acham que têm a mais. Ao cidadão comum resta-lhe admitir que nos bons velhos tempos, o fradinho economista de Boliqueime (e futuro presidente do país) tinha muita razão em dar-lhes umas valentes mangueiradas. No actual colorido cortejo folclórico os secos e os enxutos manifestam-se juntos. Já não há molhados. É tão bom viver num país de banazolas. Algures noutro país distante, um homem de 17 anos (se fosse vítima de alguma coisa seria uma criança ou, então, um jovem) que assalta uma farmácia com três pedras da calçada é baleado (não é abatido, isso só sucede a polícias), com disparos de aviso e contenção, e morre (não é assassinado). Onde para travar aceleras se utiliza rajadas de metralhadora. Nesse país o uso da proporcionalidade – parlenda política que rege actuação das forças da ordem – significa mais proporção do lado da lei.

Não deixa de ser enternecedor o ar simplacheirão do ministro da Administração Interna na Assembleia da República escudado no babadoiro da estatística. Entre 2002-2006 foram disparados 1 588 tiros pela PSP, e uns modestos 585 pela GNR, resultando na morte de 18 criminosos e 140 feridos. Será necessário melhorar a pontaria. Não se pode dizer que cada tiro um pardal. Temos que ter em linha de conta que as balas estão pela hora da morte neste tempo de contenção orçamental. Pelo seu lado, a GNR espera alcançar os seus colegas "mais rápidos no gatilho" da PSP, graças à “homogeneização da criminalidade nas zonas urbanas e rurais”, anunciada pelo Sr. Ministro. Para fim de estatística morreram 9 agentes e guardas e 46 ficaram feridos. Não se sabe quantos tiros dispararam os criminosos.

terça-feira, outubro 24, 2006

Uma aventura… na Justiça

É uma pena aquelas duas escritoras de livros juvenis, (que não imitam a Enid Blyton), nunca terem sido presas para poderem escrever, em linguagem ligeira e telegráfica, as emocionantes aventuras de um cidadão nos meandros da Justiça portuguesa. Adolescentes e jovens adultos poderiam deliciar-se com mirabolantes peripécias em ambiente de suspense, mas final previsível, como requerem este tipo de livros educativos do carácter e formação de personalidade.

Em regra tudo começa com uma denúncia anónima sobre uma actividade ilícita perpetrada no trabalho, no prédio ou no bairro. Um cidadão incomodado com o corrupio de drogados ou invejoso com rápida fortuna do vizinho alerta as forças da ordem. Chegada a queixa, a Polícia inicia as diligências. Horas de escutas telefónicas e controle dos movimentos do fajardo para verificar se a sua conduta comporta algum acto criminoso. Depois, recolhe-se as provas e manda-se para um juiz. Caso fechado.

Mas a maioria das vezes a coisa é um pouco mais complicada. Uma grande percentagem das denúncias é sobre casos associados com o tráfico ou consumo de droga. As pessoas aborrecidas com a visão inestética de drogados no seu prédio, (ou bairro), instam a Polícia a actuar. Esta identifica o foco de perturbação. A casa e o nome do proprietário para que o juiz assine o respectivo mandado de busca. (É um pró-forma para dar emprego aos magistrados. Não consta que algum seja recusado). Na esquadra estuda-se ao pormenor a operação de captura do transgressor. Através de mapas da zona dispõe-se os operacionais de forma a evitar fugas ou sumiço de provas através das janelas. Resta ao núcleo duro de entrar na casa do suspeito e proceder à recolha de indícios da prática de crime. Por uma questão de sorte poderão encontrar uma quantidade de droga que dê para condenar. Outras vezes é preciso recorrer ao engenho e colocar a droga no apartamento do malfeitor. Vai dar tudo ao mesmo pois a palavra de um elemento das forças da ordem não pode ser desmentida em tribunal. E o juiz não tem a capacidade de ler através da acusação que está perante uma tramóia. Nem lhe interessa.

Depois de entrarem de rompante na casa do suspeito de arma em punho, durante a rusga encontram a substância ilegal (saída do bolso do agente mais esperto do grupo). Mas não basta. Há que recolher outros indícios. Provas de que criminoso se dedicava ao tráfico e comércio do estupefaciente. Escolhe-se meia dúzia de objectos. Umas caixas de ferramentas, uns fios de ouro ou prata, pequenos electrodomésticos, umas canetas Parker, o que seja fácil de transportar (algumas vezes introduz-se inadvertidamente no bolso do revistador aquele canivete de colecção, ou um fio mais trabalhado, ou mesmo notas do banco de Portugal, se houver abundância). Anos de experiência ditam quais são os objectos mais relevantes que fazem disparar o sentido de justiça no juiz. Trata-se apenas de compor um processo, porque, em tribunal não há forma de provar que não foram comprados com lucros ilícitos. Nem a parte acusatória necessitará de o provar. Parte-se do princípio de que são. Só quem nunca entrou num tribunal português é que acredita que o ónus da prova corresponde a quem acusa.

Uma rusga é uma selecção de objectos, segundo um procedimento policial, que obedece a uma lógica simples: escolher os passíveis de incriminar e excluir os outros todos mesmo que sejam mais significativos. Se o indivíduo tem mil números da Fátima Missionária não interessará, mas um exemplar da Hustler revela eventualmente um carácter perverso. Um televisor novo constitui prova de desafogo económico, mas os outros electrodomésticos, a caírem de velhos não são recolhidos, por manifesto desinteresse para o caso. Uma soqueira esquecida no fundo de uma gaveta mostra um instinto violento, mas um crucifixo na parede é uma bugiganga sem significado etc. etc.

Compete ao Ministério Público alinhavar um texto coerente dentro do jargão jurídico para ser apreciado em tribunal sob a forma de uma acusação. Trata-se de expor num discurso lógico, apesar de ficcionado, a versão dos factos, segundo a Polícia, sustentada pelas provas recolhidas. Aqui entra em acção a polissemia da língua portuguesa. Os canivetes são armas brancas, uma pressão de ar é uma pistola de ar comprimido, uns fios de ouro são X gramas de ouro, umas velhas notas estrangeiras, mesmo fora circulação, é indicador de tráfico internacional que muito impressiona o tribunal, três gramas de heroína são 160 doses, etc. Regra geral, para um réu sem posses económicas ou um julgamento arredado dos Meios de Comunicação Social, a acusação chega e sobra para condenar. (Aquela azáfama de homens togados que tanto dinheiro leva ao erário público seria desnecessária). A sentença é apenas uma confirmação da acusação. O trabalho do juiz limita-se a estabelecer a pena a cumprir. A fraca preparação dos licenciados em Direito para a especificidade das realidades culturais que vão julgar reduz o seu papel a questões de ordem meramente técnica.

O excesso de férias, e sobretudo excesso de descanso, fizeram acumular muitos anos de trabalho em atraso, que levaram a uma santificada modorra que se vive nos tribunais dos nossos dias. A tal ponto que servem apenas para assegurar o vencimento no fim do mês para aqueles que lá trabalham. Cumprem horário como bons funcionários públicos. E, ipso facto, ocupam o tempo na coscuvilhice, e o “diz que disse” tornou-se na principal prova em tribunal, assim se explica que no caso Casa Pia se percam semanas a ouvir uma senhora idosa relatar, não o que ela sabia por experiência directa pois pertencia à instituição, mas o que outros lhe contaram como se tivesse acabado de chegar de Marte.

Melhorar o funcionamento dos tribunais carece da contratação de uma empresa de gestão de recursos humanos especialista em “human performance improvement” para racionalizar o trabalho e, sobretudo, ensinar a trabalhar. Um grave problema é existirem juízes a mais, e a magistratura não ser uma profissão, mas um estatuto social. Reduzir as férias não resolve nada, apenas acabarão aqueles diálogos de aeroporto de que vamos ter sentidas saudades.

- Então meritíssimo? Por cá? – pergunta gentilmente a hospedeira de terra.
- O trabalho assim o exige. Vou para Cancún debruçar-me sobre estes processos mais complexos – responde o magistrado.
Ou subindo um pouco mais na hierarquia magistrática.
- O venerando desembargador traz um bronzeado invejável – repara o comissário de bordo.
- Nem queira saber a canseira. Passei dois meses na piscina do Sheraton Krabi, na Tailândia, a redigir estes acórdãos atrasados – explica o juiz sobraçando volumosos dossiers.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Futebol e pontapé na canela

Numa época em que acabaram os analistas perspicazes, isentos, capazes de penetrar a realidade e encontrar os fios de Ariane condutores ao seu Sentido. Ficámos sem guias intelectuais que orientem na transição da idade das massas para o germinar do novo individualismo. Ficámos sem pensadores que façam a agigantada faina oceânica de um Ortega y Gasset às avessas. Para piorar as coisas, os políticos e os padres fazem o derradeiro esforço para massificar as sociedades e não perderem o emprego. Os observadores sensatos foram engolidos no ruído branco do excesso de informação, ataroucados na nova filosofia “mostrar tudo para nada revelar” dos mass media em livre concorrência, encostaram à boxe da ataraxia, definharam no mar das notícias. E, elevaram-se do palude, os comentadores perdidos no poço da ideologia. Com a simplicidade de um fã de futebol escolhem a sua equipa, enfarpelam-se a rigor de convicções e certezas, e cada um defende a sua dama como a mais bela e virtuosa esgrimindo variações sobre argumentos saídos das bocas dos seus líderes. E, isso é grave quando os líderes são simplesmente mentirosos.

Quando ouvimos disparates como a “visão” dos dois Estados de Wbush para o Médio Oriente ninguém viu que ele está apenas a macaquear Martin Luther King. Gerou-se um quiqueriqui no galinheiro da intelectualidade, que opina em troca do pay check no fim do mês, vendendo a ideia de que a solução chegou e a paz reinará na terra de Canaã enterrando as idiossincrasias dos povos. Mas, aqueles que conhecem a psicologia do povo judeu sabem que, tem mais possibilidades o Muro das Lamentações ganhar pernas e andar, do que o ancestral espírito de colonização, no cumprimento da promessa do seu Deus, esfumar-se em acordos sobre fronteiras que não respeitem os limites da Terra Prometida. Aceitar a ideia de dois Estados significa nunca ter olhado um mapa actualizado da região e não compreender da impossibilidade de um Estado palestiniano cruzado de estradas exclusivas para judeus que ligam os vários colonatos existentes. E dos que serão construídos no futuro.

As visões erradas da realidade surgem porque a única voz que os media veiculam é a dos políticos e do seu coro grego encarregado de dar mais efeito dramático ao enredo. Ninguém se preocupa em analisar a constituição psicológica do povo como um todo unido num meio cultural. Como funciona o cérebro das pessoas? Como ele foi estruturado a partir dos elementos de Cultura? Em última análise é isso que forma as estruturas cognitivas e determina as escolhas e os acontecimentos.

Matejar no emaranhado semasiológico criado pelos novos fazedores de opinião carece de uma lâmina mais afiada que a de Guilherme de Occam. Imagine-se! Até dizem que a História é uma ciência. De facto, a História como ciência é uma pura mistificação para ocupar ociosos e vender livros. Um dos maiores erros que se comete é pensar que a História é escrita pelos vivos (ilustres historiadores) num sensível trabalho de filigrana de ordenação dos acontecimentos passados. A História como elucidação do passado é uma historieta contada nas aulas televisivas do agente turístico e Prof. Hermano Saraiva. A História serve para dar sentido ao presente não ao passado. Seleccionamos os factos, privilegiamos alguns, esquecemos outros, numa trama coerente que melhor serve os nossos propósitos actuais. Que dê sentido à nossa vida e clarifique o nosso entendimento do mundo. Por isso, a História de hoje será escrita pelos que hão-de nascer, no seu afã de criar uma concepção do mundo (Weltanschauung), darão um Sentido à nossa realidade. Tal como nós o fazemos com o passado.

Para melhor se compreende que os factores psicológicos se sobrepõem às boas vontades dos políticos convém recordar dois acontecimentos anódinos que nem constam da História. Moshe Nisin, condutor de um dos bulldozers usados no campo de refugiados de Jenin, fez a seguinte declaração reveladora de uma forma generalizada de pensar: “quando me disseram para demolir uma casa, explorei essa ordem de modo a destruir umas quantas mais. Pelo megafone, avisavam os residentes que saíssem antes de eu entrar. Mas não dei hipóteses a ninguém. Não esperei. Tenho a certeza que morreu gente dentro das casas. Acho que lhes deixámos um campo de futebol, eles que joguem lá”. Talvez fosse neste campo que o neófito santo nacional, José Mourinho, patrocinou, juntamente com Shimon Peres, aquele jogo entre crianças judaicas e palestinianas numa acção de marketing político para derrubar as barreiras entre as duas comunidades. Mas isso não invalida o sentimento popular que vem ao de cima quando as câmaras de televisão abandonam o local.

Outro acontecimento deu-se em Março de 2002, no campo de Bourj Barajneh, bairro sul de Beirute. Numa manifestação anti-Israel crianças entre os 5 e 7 anos gritavam “morte a Israel” e “morte a Sharon”. E ninguém achou este comportamento bizarro. Quando crianças desta idade usam palavras tão fortes, (como se desejar a morte, seja de quem for, fosse uma banalidade), os dirigentes do mundo, sem excepção, preocupados com o fenómeno da pedofilia e na protecção da infância, deveriam parar para pensar e… demitirem-se em bloco. Assim fariam História.

sábado, outubro 21, 2006

O rei vai nu

A conhecida história infantil sobre a confecção das faustosas roupas do rei aplica-se como uma luva ao Portugal actual, com a única diferença que não aparece, no final, a inocente criança a exclamar o evidente. Que o rei vai nu.

A curiosa forma de governar o país todos embrutece, que a evidência torna-se, agora, motivo de debate ideológico entre os que “sim” e os que “não”. Os políticos lusos aprenderam a governar na era dos mass media instantâneos. É preciso empolar e tratar com linguagem dita científica todos os assuntos. Finalmente, reconheceram a importância das técnicas de Relações Públicas (essa feliz Ciência criada por Walter Lippmann e Edward Bernays, responsáveis pela máquina de propaganda do Presidente EUA Woodrow Wilson, que perceberam a essência da Democracia: um grupo esclarecido governa o rebanho, daí a inevitabilidade de criar sistemas de controlo do resto da população).

Para atoucinhar o povinho com rica polifagia de matéria orgânica para ocupar a cabecinha, primeiro espalha-se a ideia que determinado facto, situação ou acontecimento é gigantesco e de execução quase impossível, como se de um trabalho de Hércules se tratasse. Depois, mete-se as mãos na massa e as coisas saem a contento. (Este expediente funcionou às mil maravilhas com o Euro2004, apresentando-se a organização de uns jogos de futebol como uma tarefa medonha, carecida de gentes hiper-inteligentes, perladas de cursos universitários, para a sua concretização). O evento decorre normalmente, no fim lança-se foguetório, banda filarmónica, felicitações, abraços, comendas, medalhas. Que bons que somos! O termómetro do orgulho nacional sobe para valores nunca vistos deste o tempo do Ultimato Inglês, em que o patriotismo deu direito a simbólica canção, que hoje cantamos em todos os locais onde a verde rubra patriotice possa ser drapejada. O mesmo esquema está a ser aplicado ao aumento do preço da electricidade. Atira-se para a ágora 16%. Incrédulo, o cliente é informado que a culpa não é do macaco, mas de passados consumidores que pagaram pouco. Alastra a boataria. Mas afinal não foi o dinheiro do cliente, como contribuinte, que erigiu e manteve a empresa, quando um gestor mais estroina passou pelo cargo e deixou as contas escanzeladas? O dinheiro dos impostos não conta? Depois de entrar o cofre das Finanças esqueceu o antigo dono como se uma chapinhada no Letes desse? Há falta de fósforo na memória dos estadistas? Mas eis que graças ao esforço legislativo do Governo o aumento será “só” de 8%. Mais foguetório e felicidade estampada nos rostos. Escapamos de boa! E já ninguém acha um roubo da parte de uma empresa com lucros astronómicos. E, muito menos, sonha o que aí vem com a dita liberalização do mercado.

País sem crescimento económico, onde não se pode falar de empresários capazes de criar riqueza social, (a não ser que se considere, num esforço de arrevesada semântica, Alfredo da Silva um empresário. Dos actuais nem vale a pena falar, tanto riso provocam que não permitem uma análise séria. Temos de esperar que morram para estudar tão alucinante vida produtiva). Onde os patrões são uma chalaça que montam fábricas e abrem falência meses (ou anos) depois de beneficiarem do trabalho de borla dos empregados. País governado por políticos que, de quatro em quatro anos, saem do banho das urnas purificados da responsabilidade do passado, as burrices esquecidas, inocentes como crianças, para começar da estaca zero. País cuja História é um fadário de trapalhadas epopeizadas por razões psicológicas e ideológicas – para dar ao povo um ecrã inscrito de heróis onde alimentar a vaidade de ser o que não se é. Um país destes tem que ser gerido com vitórias morais ou desaparecer.

Criam-se fantasias de feira para entreter o pagode. Como o crime de tráfico de influências. Este é um acto ilícito para políticos e poderosos, impossível de definir, de provar e de condenar, no entanto, mobilizam-se agentes, juízes, procuradores, uma tropa ociosa para passear e perder tempo em rusgas, carregamento de computadores e sacos de papelada, numa encenação teatral da extravagante ideia de que a Lei é igual para todos. Ou como a nova banha da cobra chamada Europa e o seu corolário a Constituição de Giscard. Apresentada como a mezinha para todos os problemas. Quando os franceses disseram “não”, os políticos duvidaram da sua própria democraticidade e muitos pensaram abraçar o demónio da ditadura. (Provando que democracia só existe quando os resultados são a contento de quem manda. Quando não são, dá-se a volta ao prego, espera-se que Chirac saia do poleiro e volta-se a fazer o mesmo referendo). Mas os portugueses, que votam “sim” a tudo por causa dos subsídios, deveriam saber que as instituições europeias são o lugar onde o político, truão e lambaz no seu país, arranja um emprego de chuchar o dedo, como aquelas duas cerejas no bolo europeu – Durão Barroso ou Romano Prodi, para só referir as duas últimas. Ou, então, a mais recente prosápia da segurança nas estradas agora em voga. Ninguém reparou que os carros são um objecto de consumo que por razões económicas têm um custo de produção limitado para poderem ser vendidos a preços acessíveis e isso afecta a sua segurança. E potencia mais consumo criando outros negócios paralelos como coletes reflectores, cadeirinhas para bebés, cintos de segurança, ABS, etc. etc. Em vez de se atacar o problema de frente, (proibindo os carros utilitários e circunscrevendo as vendas da poderosa indústria automóvel aos carros topo de gama), endurece-se o Código, lamenta-se os mortos e aproveita-se para arrecadar mais algum com pedagógicas multas. (No entanto, a actividade humana que mais estropiados e mortes provoca é o Trabalho. Nunca se ouviu uma voz a reclamar a sua extinção, penas exemplares, castigos cruciantes ou dizer que se trava uma “guerra civil” no estaleiro).

Nem tudo são desgraças. Os portugueses têm um papel muito importante na cena internacional no enriquecimento do repertório universal de anedotas. No conturbado início do século XX a lusa instabilidade política deu azo a uma laracha contada nos salões europeus. Quando se ouvia algum barulho, (a queda de um copo, ou de um livro, ou uma culapada de uma dama da corte), dizia-se, desencadeando uma risota geral, que caiu o Governo em Portugal. No bem-aventurado início do século XXI nos restaurantes de fast food conta-se outra requintada anedota. Pergunta-se com ar sério: “para que serve um português na Fórmula 1?” E responde-se: “porque é necessário alguém para chegar em último lugar”, fazendo espalhar as batatas fritas salpicadas de ketchup num ataque incontrolável de riso.

Também não estamos muito mal no departamento do conhecimento grosso modo. Somos o único país do mundo que sabe na ponta da língua quem foi o vice-campeão europeu de futebol em 2004. E, somos um povo sortudo, pois podemos migrar para junto da fronteira de Espanha aproveitando os preços mais baixos praticados no país vizinho. Como dizia um lépido parlapatão do reino dos tolos: “habituem-se”. A procissão ainda vai no adro. Os acontecimentos extraordinários seguem dentro de momentos.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Academia de polícia XXI – o filme


Quando se deu o golpe militar do 25 de Abril sucedeu um milagre que passou desapercebido aos analistas mais desatentos. A PIDE – chamada DGS no consulado de Marcello Caetano – tinha a melhor rede de informadores do mundo, onde assentava toda a sua eficiência na protecção do regime político em vigor durante quarenta e oito benditos anos. A polícia política pagava bem e, por tabela, satisfazia o sentimento bem português da inveja pelo vizinho. Matava dois coelhos com uma cajadada. Velava pela saúde económica e psicológica do cidadão. Este ganhava uns cobres e podia fazer mal a quem não gostasse. E, de repente, num abracadabra mágico, no meio do folclore de soldados amigos do povo, chaimites e cravos vermelhos, eles desapareceram. No dia 26 todos eram democratas de gema… clara, casca e tudo. Juravam que tudo fizeram para que o benfazejo regime democrático chegasse às praias lusas. Que não aguentavam mais as garras da censura à volta do pescoço coarctando a entrada do ar da Liberdade. Que aquilo era tudo cinzento e almejavam as psicadélicas cores do submarino amarelo dos Beatles. Que se não fosse a PIDE andavam por aí feitos uns Easy Riders, (como Peter Fonda e Dennis Hopper), ao som de “Born To Be Wild”, dos Steppenwolf. Os feios fascistas, e simpatizantes, transmutaram-se em belos democratas como num conto de fadas abrilhantado, não pelo “Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, mas pela “Grândola, Vila Morena” do olvidado Zeca Afonso. Hoje, trinta e dois anos depois, é possível saber o que se passou.

Ao vermos o emocionado Jorge Sampaio (nas funções ainda de Presidente da República e não como Sancho Pança da ONU na luta contra a tuberculose multi-resistente) num carro descaracterizado da GNR, espantado com a incivilidade dos condutores, galrando com os Guardas para encher tempo televisivo público, e a constatar surpreendido que os automobilistas alteram o seu comportamento ao verem que no carro vão dois homens fardados. Num passe de mágica da cartola saca joanica ideia. De que eles deveriam passar a apresentar-se também à paisana. (Em plain clothes, para as novas gerações instruídas no Inglês básico). Que seria uma forma de melhor controlar as estradas.

Poderíamos pensar que o então Presidente neceava para estar ao mesmo nível intelectual dos Guardas, como se estivesse numa estólida conversa de quartel, de portuguesíssimo rubinéctar regada. Ou, que, o politicão estava a aguitarrar a realidade injectando-lhe mais faca e alguidar para que, finalmente, o Fado se tornasse a música nacional, substituindo o “encapuzado” pelo “bófia à paisana”. Mas podemos ver as coisas de outra forma. Quando os heróicos militares ceivaram o povo do curral da longa noite fascista, o “polícia” (efectivo e mental) não foi escorraçado para o exterior. Para o tropical Brasil (Marcello e Thomaz) ou a tauromáquica Espanha (Rosa Casaco). Ele foi interiorizado. No bom fundo português está adormecido o "polícia". De vez em quando levanta o cassetete e exige a sua oferenda de sangue, nódoas negras, ossos estilhaçados ou euros de multas. E vem mesmo a calhar porque estamos no campo profissional do português do futuro. Do século XXI.

A História Económica portuguesa recente descreve-se em duas pinceladas. O tempo em que a praça da jorna era o centro económico da aldeia desapareceu, e com ele, um povo de senhores da terra e jornaleiros, ignorantes, supersticiosos, agarrados ao xaile e às histórias da Bíblia, contadas por melosos padres. A industrialização em Portugal foi uma miragem, serviu, apenas, de expediente para explorar um povo famélico e acumular fortunas em meia dúzia de famílias. O desenvolvimento do sector terciário foi a tábua de salvação engrossando uma função pública que dava emprego a quase todos. Sem agricultura e indústria os restantes portugueses viram-se para a construção civil, criando um país de cabouqueiros e trolhas, optimizando a experiência adquirida nas obras em França. Durante uns tempos a prosperidade floresceu, mas os 91.836 quilómetros quadrados, arrancados a ferros aos espanhóis, em 1297, por D. Dinis, no Tratado de Alcanizes, e disponíveis para a construção estão a esgotar-se rapidamente. Pedem-se novas competências aos herdeiros de Viriato e dos três embaixadores subornados por Servílio Cipião. Os lugares de portugueses de sucesso no estrangeiro são limitados, não chega para todos, a emigração em massa está fora de questão. Sem uma classe empresarial com ideias o futuro parece ser um eterno desemprego. Com os políticos não vale a pena contar, conscientes da sua incapacidade para governar, circunscrevem as suas ambições à luta por um lugar decorativo numa organização internacional (ONU, Comissão Europeia, Organização de Unidade Africana, Associação Internacional dos Padeiros e Pasteleiros, etc.).

Tal como nos meados da década de setenta a bóia vem do emprego no improdutivo sector terciário. Mas não na função pública no sentido restrito. Essa deu o berro em Portugal. O mangas-de-alpaca terá de vestir a farda para se adaptar ao ar dos tempos. O emprego das novas gerações de portugueses será na Polícia. O futuro trará uma pletora de especializações. Teremos a polícia tributária. A polícia do cocó do cão. A polícia da separação do lixo. A polícia da Internet. A polícia do parquímetro. A polícia do lixo atirado da janela para a rua. E todas as outras que a imaginação trouxer e as necessidades de controlo por parte do Estado o exigirem. Quem acredita na fantasia de que o neo-liberalismo económico significa menos Estado deveria ler Josef Estaline para saber como isso se faz. (Num Estado em vias de extinção, o seu desaparecimento passa inevitavelmente pelo reforço dos seus poderes). O futuro será o Estado policial. E, os portugueses, graças aos frutos do regime do Prof. Dr. Oliveira Salazar, podem tomar a dianteira da Humanidade outra vez, desbravando os mares ignotos da vídeo-vigilância, dos computadores de reconhecimento facial, dos cartões com dados biométricos, dos arquivos de ADN. E, desta vez, nem é preciso dobrar Bojador algum. Basta exteriorizar o “polícia” que temos dentro de nós.

terça-feira, outubro 17, 2006

Nação valentona

Os descendentes heróis do mar estão a dar cartas em terra, nas mais variadas áreas, e com tanto sucesso que corremos o risco de suplantar os americanos na resolução de conflitos locais e assessoria técnica nos mais sortidos problemas que assolam o homem moderno pós Guerra-Fria. A nação valente voltou a produzir resplandecentes Vascos da Gama que saltam os gigantes Adamastores como se fossem pocinhas. O clima jogralesco faz, de novo, os bardos sacarem das liras, olharem as musas em diáfano John Galliano envoltas, e cantarem os elevados empreendimentos nacionais. Este espírito é visível na nova classe política, de se lhe tirar o chapéu, que comanda os destinos pátrios. Dela sairá pela certa, por muitos e bons anos, conceituados figurões que nos orgulharão na estranja em instituições de prestígio mas falidas de eficácia. O povo gosta deles, nem percebeu que todos os que prescrevem mezinhas e poções mágicas para a crise são os directos responsáveis por ela. O nobre povo não é muito inteligente, mas, de esperança tem baldes para dar e vender. Agarra-se aos símbolos nacionais, Nossa Senhora de Fátima e a garrafa de tinto, e toca para a frente a banda sem dó sustenido. Entre as brumas da memória escurecida de álcool e devoção tropeça no esplendor de Portugal.

Depois do golpe militar de Abril 74, os políticos emergentes conheciam as suas limitações e mediocridade congénita, sabiam que não tinham capacidade alguma para governar o país, mas, como bons funâmbulos não deram parte fraca e mantiveram-se no principesco tacho, e viram nos subsídios europeus uma rápida forma de fazer brilharete. Trataram logo de entrar na CEE para começar a receber. Os subsídios europeus eram a nova pimenta da Índia, permitiam fazer obra, mexiam caravanas de carros topo de gama para inaugurações e beberetes, arremelgava os olhos do Portugal profundo. Estradas, edifícios magnificentes, alfabetização, acesso à Cultura, água canalizada, luz eléctrica para todos, enfim, onfalóide modernização do país que vai permitir durante mais umas décadas olhar para o umbigo e acreditar que tudo vai bem no reino dos couratos avinagrados e dos túbaros açucarados. Afinal, os políticos aprilinos socorreram-se do mais característico expediente luso que permitiu um povo sem valor seguir em frente apesar de todas as oportunidades históricas perdidas, isto é, o chico-espertismo. Este é o grande contributo de Portugal para a Humanidade, não essa patranha salazarista de dar mundos ao mundo, mas esta capacidade de se desenrascar no dia a dia sem preocupações de maior com o dia de amanhã. Os portugueses nunca tiveram um desígnio nacional, os tempos épicos de Camões só surgiram a posteriori, na realidade, nunca foram vividos pelas pessoas da altura. Em boa verdade, a nação valente desenrascou uns problemas técnicos que a navegação de longo curso implicava, trouxe uns fardos de especiarias para ganhar uns magros cobres, e os ingleses ficaram com o domínio dos mares, e os holandeses com a primazia na investigação científica. Aos joco-sérios historiadores portugueses restou a tarefa de meter fagotes e violinos na História para a tornar música para os ouvidos das gerações futuras. E como se sonhava nas escolas primárias com populares heróis nos tempos pré-Steven “Indiana Jones” Spielberg ao ouvir as narrações dos feitos lusos.

Exemplos do chico-espertismo encontramos em todas as esquinas e baiucas. Na contabilidade das empresas, no atendimento ao público, nas conclusões da maior parte das investigações policiais, no comportamento automobilístico, na reparação de electrodomésticos, nos discursos da Assembleia da República. Perpassa todas as classes sociais e profissões. Quando vemos um empresário, dos importantes, daqueles com recheada carteira, dizer que nunca houve acidentes nucleares, excepto Chernobyl, onde só morreram quarenta e quatro pessoas, estamos em presença de um chico-esperto. Nem destoa do resto da tropa. Tem apenas outras prioridades. Persegue o lucro estapafúrdio. O empresário português é muito bom a fazer dinheiro para si próprio, pouca, ou nenhuma, utilidade tem para o país. Felizmente, o mundo desenvolvido sabe do verdadeiro lugar geográfico de Portugal. Fica em África. (Numa emocionante homenagem de compreensão para com os portugueses, os organizadores do Live8 puseram a fadista Mariza a cantar no palco Eden Arena, dedicado precisamente a África, num belo exemplo de que mesmo os azougados menestréis da pop music não estão de ouvidos moucos nas aulas de Geografia). Ora, num país africano tudo é permitido, a fome aguça o engenho, as regras são as da sobrevivência, quanto mais chico-esperto mais possibilidade de ter uma vida longa e regalada. Aliás, as grandes dádivas da colonização portuguesa ao mundo foram o cristianismo e o chico-espertismo.

Mas a verdadeira invenção nacional não foram as bolachas Maria nem o pastel de bacalhau. O traço específico que nos caracteriza, que nos diferencia dos outros povos, que nos liga à Pátria como cola, que enche os poemas como uma maré, não é a Saudade mas a Sorna. Essa sim digna de ser recuperada para o museu da Humanidade da UNESCO como o singelo contributo de um país pequeno em tamanho mas grande na alma das suas gentes. A preguiça mental (ou física) do português perfaz um povo dócil, fácil de governar, duas cantigas chegam-lhe. Desde que haja uma bananeira para estar à sombra, um santinho para rezar, um copo de três para emborcar, está feliz. É por isso que podemos ver os políticos sucederem-se no Poder como se fossem eternamente novos. Durante o seu consulado não fizeram nada de jeito? Não interessa. Descansam durante uns anos na prateleira, fazem um peeling e voltam rejuvenescidos como se fossem o juvenil Sebastião.

segunda-feira, outubro 16, 2006

O Estado monárquico

O mundo tornou-se uma grande brequefesta para pessoas de conta bancária obscena e que a querem obscenizar ainda mais. A época da exploração sem limites está aberta. A caça ao trabalhador com o salário mais baixo é o motor que dá vitalidade à vida económica do início de século. E, faz o Capital circular pelo mundo na demanda do novo Santo Graal, isto é, do trabalhador ideal, aquele que trabalha de borla. Aquele que renderá o maior lucro, dinamizando as economias locais, através de providenciais deslocalizações, com pratos de arroz para os proletários e caviar para os capitalistas. A máxima do artista pop americano Andy Warhol – “making money is art” – finalmente se realiza. Os verdadeiros artistas surgem como personagens de uma ópera bufa de Gioacchino Rossini distribuindo soluções para os problemas dos outros e felicidade para todos no novel Shangri-La. Claro que “todos” é apenas uma maneira de falar na generalizadora linguagem democrática. A maior parte não tem acesso a esta papança para barracudas de dente mais afiado e hodiernos produtos financeiros em carteira. Uma verdadeira fauna do outro mundo. Por exemplo, o presidente do conselho de administração de uma empresa, pública ou privada, em vencimento, regalias, e pensões, é um alienígena, comparado com o porteiro que todos os dias lhe abre a porta.

Em tempos idos o liberalismo económico funcionou para os ingleses porque eles tinham os canhões. A supremacia militar para abrir mercados e impor as condições das transacções é fundamental numa economia de mercado livre. (Não pode haver Liberdade política, económica, religiosa etc. sem uma arma que a sustente). O melhor exemplo deste liberalismo foi a Guerra do Ópio (1840-1842), em que a Inglaterra vergou o imperador chinês às suas condições com umas canhonadas certeiras no palácio. O pobre homem derrotado assinou o tratado de Nanquim onde cedeu aos ingleses Hong-Kong, e a abertura ao comércio britânico dos portos de Cantão, Xiamen, Yangtsé, Fuchu e Xangai. E para o seu povo conseguiu o vício do ópio que durante décadas destruirá a China. No entanto, as trocas comerciais, a circulação de mercadorias e a acumulação de Capital seguiram de vento em popa.

Querer liberalismo sem armas é algo tão estranho como fazer omoletas sem ovos, comer batatas fritas sem ketchup ou esperar D. Sebastião em pé. Por isso, os Estados democráticos, que trocaram a escopeta pelo diálogo, perderam o seu poder, ficando nas mãos dos capitalistas (dos países que investiram no aperfeiçoamento do seu armamento) e fazendo dos seus políticos meros moços de recados. (O ponto alto dos portugueses situa-se no catering oferecido por Durão Barroso na cimeira das Lajes quando americanos, espanhóis e ingleses decidiam a invasão do Iraque). Estes políticos menores servem para vender património e privatizar tudo o que antes era considerado bem-comum. Neste novo conceito de Estado, sem bens que permitam o auto-financiamento, lança-se mão ao último expediente que resta, ou seja, derramar taxas e impostos sobre o povo. Tal como uma velha família real que vive abastadamente à custa dos impostos, o Estado transmuta-se no monarca dos novos tempos, que exige dos seus súbditos cada vez mais tributos para fazer face ao seu caderno de encargos, exponencialmente aumentados todos os anos com o fausto espectacular da sua manutenção. O rei exigia dinheiro para jóias, roupas e banquetes. O Estado exige-o para alimentar o novo pechisbeque: a Saúde, a Educação e a Segurança (e umas auto-estradas que não levam a lugar algum mas destroem o ambiente e dividem as aldeias ao meio). Só nos resta esperar que no futuro o Estado, tal como a família real inglesa, se torne numa curiosidade para atrair turistas, e vender revistas cor-de-rosa a empregadas de limpeza interessadas na vida dos ricos e glamourosos. Ultimamente no Japão e na Inglaterra assistimos à assimilação dos ritos sucessórios da realeza pelo Estado democrático. O cargo de Primeiro-ministro foi transmitido ao sucessor, por nomeação do cessante, em vez das louvadas eleições. É verdade que o lugar foi passado ao delfim mais querido mas, com o progresso, a consanguinidade voltará a ser o critério de herança do poder.

É aflitivo o espectáculo proporcionado pelos economistas portugueses aconselhadores de políticos, e alguns deles até pontificaram como ministros em Governos caídos no olvido, mas que banhados no Ganges, limpos de pecados e asnices passadas, aparecem a debitar teorias sobre reduções de défices. A mais conhecida é a do “arrastão para reduzir o défice”, ou seja, cortar a eito nas despesas e aumentar à parva os impostos (ou chamemos-lhes “taxas” para manter a promessa de não aumentar os “impostos”). Especialistas de alto gabarito da tralhoada vida académica portuguesa fazem jus aos seus antepassados. É apenas uma questão de lógica. Um povo que em oitocentos anos nada fez de importante, não pode de um momento para o outro, por artes mágicas, começar a dar cartas no mundo, numa matéria que ainda por cima envolve a matemática. Do meio académico não poderemos esperar soluções algumas para crises ou achaques da economia, porque os doutos espertalhões também perseguem aquela reforma dourada no fim do arco-íris após poucos anos de trabalho.

E para o Zé-povinho não vai nada, nada, nada? Excepto, mais uma canga no cachaço? Na impossibilidade de esperar protecção numa época em que só os que têm dinheiro se sentam à mesa da opípara festança da exploração global, resta-lhe reconhecer a vitória do Capital sobre o Trabalho. E, neste caso, a melhor forma de defesa é comprar uma boa arma. Agora, não há Robins dos Bosques enfiados nas florestas de Sherwood a roubar aos ricos para dar os pobres, (nem se pode esperar que o piedoso anelo do teórico do liberalismo, David Ricardo, se realize, e os ricos distribuam a riqueza livremente), todos terão de lutar pelo pão-nosso de cada dia.

domingo, outubro 15, 2006

A flora fandanga

O jardim à beira-mar plantado sempre deu flores de mau cheiro, mas no início do século XXI, o fedor entope as narinas dos defensores do discernimento e do bom senso. O novo discurso positivo dos órgãos de Comunicação Social do Estado tresanda, entre o infantil e o trapalhão, atingindo toda a população com a sua mensagem de sopegar o moral nacional para um futuro brilhante. Mesmo a RTP, em eterna crise financeira, esforça-se por difundir um neotérico discurso em epopeico camoniano revisitado. Afirmativo, elevado, triunfante. De heróis acidentais povoado. Transmutando em ouro faits-divers e anedotas históricas cometidas em estranhas terras pelos portugueses da diáspora. A lista é variada. O pasteleiro responsável por tornar very british o pastel de nata. O piloto que por um triz não ganha o primeiro lugar no Grande Prémio de Indianápolis, (para tão descomunal proeza se concretizar bastava Schumacher ter chocado com Barrichello à saída das boxes, mas os fios das Parcas não se entrelaçaram a favor dos lusos, que sofriam em directo à frente do televisor). O merceeiro que fornece le dernier cri ao jet-set do gosto requintado. O músico, tipo vou ali e já venho, produtor de selecta associação de notas musicais em estúdio de gravação high tech revoluciona o hit parade em Londres. O actor secundário, descendo marmórea escadaria em Sunset Boulevard, sempre preparado para o seu close up. O padeiro, chamado Manuel, que através de secreta mistura de farinhas e fermentos moldou a internacionalmente afamada bunda brasileira. Toda uma neo-galeria de heróis lusitanos sai debaixo da calçada ao som do pífaro tocado por inteligentes pantólogos na tecelagem de filigrana semântica geradora de esperança e fé no cumprimento (finalmente) do quinto império e os segredos de Fátima (dois em um).

Os políticos, peritos do blablabla, mantém-se sempre na linha da frente para miracular o amargurado quotidiano, numa fatalidade aceitável, como se a vida do português fosse um eterno dia na Disneylândia. O povo com falta de heróis agradece. E prefere um simpalhão como o Alberto João, protegido pela mão que segura o solidéu, com a sua tendência para a moxinifada consegue quimerizar sobre o futuro brilhante, fazendo-nos esquecer o pequeno líder da oposição. Este, sem ideias e comprometido até às pontas do escasso cabelo com a situação desastrosa do país, não perdeu a vergonha e deu-lhe o amok da honestidade política, atacado de andromania pelos valores, prega a Moral para passar o tempo enquanto não chegam as próximas eleições que, confiante na amnésia dos portugueses, espera ganhar. Infelizmente, este desgraçado espectáculo não é a excepção mas a regra entre a classe política, que como uma nuvem de ampelófagos, ronda as vinhas da nossa ira para ganharem promoção pessoal, fortuna e uma modesta nota de rodapé na História. (Contrariando uma das frases feitas mais idiotas que se criaram de que “os políticos em Portugal são mal pagos”).

Os empresários, de rédea solta depois da falência dos sindicatos, preparam-se para o pultáceo jantar da globalização e transformar a Europa numa sweat shop. Numa nanóide imitação da China, sem segurança social, pensões de reforma e leis de protecção do trabalhador. Os empreendedores portugueses, que sempre sofreram de ergofobia, perceberam que a melhor forma de enricar é explorar o trabalho dos outros descaradamente. Os pruridos da consciência curam-se com o extracto de conta decuplado várias vezes. Secundados por gestores chamados a tumefazer o valor da empresa no mercado. Estes especialistas de gabarito chegam de laptop, munido com o layout de cenários informatizados aplicáveis às situações da realidade, como se fossem decalcomanias milagrosas da Economia sem ideias e de soluções massificadas. Ou os gestores topo de gama, com carro e cartão de crédito à descrição, provando que são os melhores na avicultura de capoeira recorrem à alectoromancia para encontrar soluções de administração e gerência criativa. Os lucros disparam tanto que o empresário tem de comprar malas novas para carregar o dinheiro para os off shores.

Mas as flores mais melindrosas do canteiro no fim da Europa plantado são os economistas. Uma vegetação realmente rasteira, sem cor nem brilho limitam-se a reproduzir fórmulas que não funcionam em lado algum. (Alguns chegam Presidentes da República). Uns gazolas que afocinham os problemas com palavras em inglês aprendidas no MBA tirado em Universidades de reconhecida notoriedade internacional em formar elites. Onde aprendem a borriçar a verborragia com uma roupagem científica para enganar o tolo que olha para a Ciência como um boi para um palácio. Contra esta tropa de choque, que olha o mundo como um tabuleiro de xadrez, para deslocar empresas na direcção da mão-de-obra mais barata, nunca a máxima de Marx – “proletários de todo o mundo, uni-vos” – esteve tão actual. Contra a exploração global só poderia resultar uma organização e uma luta globalizada para resistir às imposições unilaterais do Capital.

O povinho, que retrocedeu aos tempos de Columbano Bordalo Pinheiro, pode fazer como o jerosolimitano romeiro que bate à porta de D. Madalena de Vilhena trazendo notícias de seu marido, D. João de Portugal, perdido na batalha de Alcácer-Quibir. Mas, desta vez, invertendo a versão de Almeida Garrett no “Frei Luís de Sousa”, o povo deverá responder “ninguém mora aqui”, quando o inspector da polícia tributária lhe bater à porta. Porque, nesta altura do campeonato, já deveria ter percebido que o seu único futuro será de pagador de impostos para sustentar as milhentas flores de estufa que crescem no país.
Viver a boa vidinha


Os dirigentes actuais poucos riscos físicos correm. Passou a fase em comprometiam a sua vida na linha da frente, ombro a ombro, com o povo que lideravam. Em que uns tiritos, ou uma bomba, poderiam levá-los precocemente para junto do Criador. Como nos bons velhos tempos da resistência anarquista contra o enriquecimento obsceno da burguesia e as condições miseráveis da maior parte da população. (O anarquista italiano, Caserio, em 24 de Junho de 1884, mata o Presidente francês Sadi Carnot. Em 14 de Setembro de 1901 Leon Czolgosz abateu o Presidente americano William McKinley). Nessa conturbada transição de século, quando os líderes subiam muito alto na torre de marfim, lançava-se-lhes uma bomba para cima, que os trazia de volta à realidade terrena, era limpinho como ginjas!

Na nossa passagem de século as coisas são mais complicadas. Comer em mesa farta. Habitar e trabalhar em boas habitações. Cirandar entre ricos e importantes. Viajar de motorista em carro de alta cilindrada com ar condicionado. Cercados por assessores praticamente nem precisam pensar, nem mexer uma palha para executar as suas funções. A boa vidinha separou os dirigentes do povo. Este, despido do “poder real”, é-lhe dado o “poder soberano” e uma arma não letal chamada “voto”, como a sua parte de um hipotético contrato social. (Uma patranha rousseana, adoptada por teóricos do Estado e sicários, de um facto muito mais ancestral que Rousseau. Na verdade, é a transposição de uma realidade biológica, - a existência do macho alfa entre os mamíferos -, para o âmbito social. Os mais fracos para protecção delegam nos mais aptos a sua defesa e liderança, como contrapartida abdicam de parte da sua liberdade). Assim, periodicamente, o povinho é chamado a escolher o líder da sua comunidade, mas pouco pode fazer para controlar os seus actos. Se exceptuarmos a grande léria política da submissão ao escrutínio do voto.

Os condutores de homens actuais são uma espécie de pranteadeiras trajando alta-costura. Durante as desgraças visitam hospitais, se forem de real família. Ou botam o choradinho discurso da solidariedade, se forem plebeus. Para si próprios traçam percursos estrambólicos: serem firmes nas ideias, perseguir ideais, honestidade nas decisões, lealdade institucional, respeito pelos seus princípios e, até, os mais ambiciosos, ficarem na História como cumpridores e executores de um desígnio supremo ou divino. Uma paleta de boas intenções a perder de vista num arco-íris pardacento estendido para um horizonte tantálico. A segurança do ordenado e a choruda pensão garantida dão outra perspectiva do mundo, muito diferente do cidadão comum que, todos os dias, entalado nos transportes públicos, tem de pôr comida em cima da mesa, atormentado pela incerteza do amanhã. (Viver com um belo vencimento aplica-se também aos políticos nacionais. Por exemplo, dizer-se que os políticos portugueses ganham pouco, revela a pequenez do povo português, que de forma natural gosta de se submeter a um ditador. Basta pensar que, por debaixo do folclore contestatário, nunca foi tão feliz como no tempo de Salazar. O político mais importante do século XX, que definiu a estranha maneira de ser lusa contemporânea, satisfeita num universo de Fado, Futebol e Fátima. E zero em inteligência. Os ordenados têm que comparados com os outros auferidos no país e não com o que ganha um político espanhol ou italiano. E dentro desta perspectiva os políticos portugueses são principescamente bem pagos).

A visão evangélica do mundo que nos últimos tempos se tornou moda apoiar, faz sentido na América, um país que deve a sua grandeza económica à ética protestante, sobretudo a calvinista. E na recente Administração ainda mais. O seu líder passou por uma experiência de dependência de drogas e consequente tratamento de desintoxicação. Se a dependência física é tratada com o recurso à química, a psicológica, regra geral, é curada com doses maciças de religião. Os doze passos do método de Minnesota procedem à substituição da droga por Deus, por isso, ninguém se admira que a palavra mais pronunciada por Wbush seja “rezar”. E, isso condiciona uma monolítica agenda política com apenas um objectivo: pôr o mundo a rezar. Podemos ver este desiderato na sua prioridade em direitos humanos. Para a Administração Americana esses direitos reduzem-se, essencialmente, à liberdade de culto religioso. A garantir que cada cidadão do mundo – que não seja “evil one” neste caso pode e deve ser torturado – tenha um lugar onde rezar sossegado, tal como Wbush e a sua equipa têm no sacratíssimo aconchego da Casa Branca. Ridículo, é vermos esta salgalhada político-religiosa ter eco nos politicalhões europeus que viajam pela Europa sem pôr o pé fora do BMW. Cada vez mais distantes das pessoas, ainda acabam por incluir as benditas referências ao cristianismo na Constituição Europeia, satisfazendo as reivindicações do Vaticano, e chateando ainda mais os turcos. Em tempos incertos, o Parlamento e a Igreja devem apoiar-se como duas faces da mesma moeda, como os dedos e anéis que se devem ferrenhamente preservar. A aliança entre o poder temporal e o poder divino funcionou na perfeição durante a Idade Média, não há nenhuma razão para que não funcione agora em que o excesso de informação lançou o mundo outra vez nas trevas.

O povo cingido ao voto, sem poder efectivo sobre os actos dos seus dirigentes, cada vez mais embrutecido pela publicidade e pelas técnicas de Relações Públicas, não lhe resta outra alternativa senão seguir a máxima maoista: se não consegues vencê-los junta-te a eles.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Nas barbas da rainha


As sociedades de comércio livre, controladas pelo poder económico-financeiro, segregaram para segundo plano o poder político. Os profissionais desta actividade passaram a ter sérias dificuldades em justificar o seu lugar na sociedade, que passou a vê-los como uma excrescência supérflua, decrescendo, a olhos vistos, a afluência às urnas nos actos eleitorais. A velha técnica de prometer pão e circo declina como chamariz para atrair o cidadão eleitor à medida que a riqueza das sociedades cresce satisfazendo cada um segundo as suas necessidades. O inesgotável palavreado dos políticos esvai-se de sentido, cheira a banha da cobra, adquire mofo e deixa as assembleias de voto às moscas. O que se passou com a utilidade dos líderes políticos? … E tudo o vento do dinheiro levou. Tornavam-se nos modernos bobos da corte. Ninguém duvida que, por exemplo, o CEO da McDonald’s tem mais poder efectivo que a maior parte dos chefes de Estado ou de Governo (excepto, os que seguiram a opção americana de patrocinar sectores económico-industriais - o seu Presidente passou a ser apenas um testa de ferro de alguma poderosa indústria. No caso da administração em funções, a petrolífera e a de armamento militar). Era urgente montar uma nova tenda com espectáculo renovado, instrumentos novos e bailarinas mais ecléticas. Em suma, era preciso mudar o disco e a ajuda, tal como na Idade Média, veio do Islão.

É um método muito antigo para manter o poder. Quando as coisas estão mal inicia-se uma guerra. (Os imperadores romanos usavam e abusavam do estratagema. Às vezes a coisa dava para o torto. Marco Aurélio usou o esquema atacando os Partos, para os lados do Irão, venceu, mas trouxe para Roma, além do saque, uma doença desconhecida, provavelmente malária, que dizimou um quarto da sua população). Para que uma campanha militar tenha o apoio popular generalizado, e ninguém gosta de morrer, recorre-se a uns truques de polichinelo, mas de grande efeito psicológico, que qualquer aprendiz de político muito bem conhece na sua gestão de grandes multidões. Usa-se o “choque atordoante” que dá resultados imediatos (utilizado com sucesso pela administração Roosevelt que deixou o ataque a Pearl Harbour suceder para gerar uma onda de repudio e ódio entre uma população americana pouco motivada para a guerra. Desde esse dia 7.12.1941 as filas nos postos de alistamento perdiam-se de vista e os G.I. Joes combateram com o empenho que se viu). Ou, então aproveita-se o silencioso “terror psicológico” (tão bem explorado nos velhos filmes de cowboys e índios de John Ford. As caravanas de colonos que atravessavam o Far-West estavam sujeitas a uma ameaça sempre presente mas invisível. E, assim, o realizador americano mantinha o espectador em suspense sem ter que gastar muito dinheiro em actores secundários e figurantes). O espanto causado por um acontecimento doloroso que feriu o orgulho nacional ou o medo contínuo de um inimigo invisível continuam a ser os melhores métodos para conduzir as massas à guerra.

A categoria de inimigo requer umas pinceladas para provocar a aversão imediata (veja-se o que sucedeu ao apoio popular à guerra do Vietname quando, na imagem veiculada pelos media, Ho Chi Min, com o seu ar diáfano, parecia um santo e o aspecto oleoso de Richard Nixon transmitia a ideia de um patife dissimulador). A demonização do inimigo é a primeira letra da cartilha pronunciada pelos senhores encarregados de preparar o povo para a guerra. A linguagem política – o terrorista, o islamita, o fundamentalista – usada na nossa época para agitar patriotismos, empunhar estandartes e ir para a guerra, situação permanente de uma sociedade interessada em propagar o comércio livre, é eficaz em agitar corações e má conselheira para a razão. Quando a fanfarronada política se torna em conceitos sociológicos, encurta a distância da análise, e o comentador isento desaparece substituído por um yes man. (Os nossos comentadores e académicos são de morrer a rir. Batem os “Gato Fedorento” nos trocadilhos da Língua portuguesa).

O dialecto político-religioso americano sobre os perpetradores de atentados – evil ones, bad person, thugs, evil ideology – tem dificultado a compreensão do fenómeno. Neste new speech de Washington “árabe morto” é traduzido por “militante islâmico”e ninguém se apercebeu da desonestidade e cobardia deste tipo de generalizações. Quando as bombas rebentaram em Inglaterra, nas barbas da rainha, vieram dar uma nova hipótese de uma abordagem científica dos factos. Os terroristas não são mais uns barbudos sujos, desconhecidos, encafuados nas areias do deserto, mas o vizinho next door, o professor dos nossos filhos, o rapaz que joga cricket, o friendly neighbour (que tão bem conhecemos das aventuras do Homem-Aranha). Talvez, finalmente, acordem para o entendimento das razões que estão por detrás deste tipo de comportamentos estranhos para a sociedade ocidental. (Como seria bom que a luz viesse de um investigador português para juntar aos inúmeros factos que nos últimos tempos os lusitanos tem sido responsáveis).

Mas pelos vistos não. O desejo mais íntimo de Tony Blair seria meter um chip em cada árabe e controlá-los por GPS mas, démocratie oblige, as medidas escolhidas para combater o terrorismo têm de ser iguais para todos. Não queremos ser acusados de trogloditas que ainda não descobriram o regime político perfeito. Controlar as chamadas telefónicas de todos os europeus é suficientemente democrático. Controlar os Meios de Comunicação Social para minimizar o “efeito jarrão de Bagdad” (como bem teorizou Donald Rumsfeld. Passar repetidamente a mesma imagem dava a ideia errada de que existiam centenas de jarrões em Bagdad). Ipso facto, passar imagens de árabes ensanguentados, estraçalhados, queimados até parece que os estão a matar e não a levar Liberdade e Democracia, também não é uma boa medida. Toda a gente se empanturra com televisão, a informação tem que ser controlada para o nosso bem.

Não se combate o terrorismo com lugares comuns do estilo: não hostilizar a comunidade islamita, conseguir a adesão dos moderados contra os sectores mais fanáticos e radicais, combater o racismo e o anti-islamismo para que, atitudes estigmatizantes, não acentuem mais o radicalismo. Controlar é a palavra de ordem nesta visão apocalíptica dos dirigentes actuais. Seja de camisa castanha ou camisa preta, o fascismo é a sociedade democrática atingindo o seu estado de perfeição.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Os Gordiços

Três coisas caracterizam um país subdesenvolvido: a paixão pelo futebol, um prémio Nobel da literatura e uma carga religiosa excessiva. Portugal tem finalmente, no seu percurso histórico, estes atributos que o colocam, sem equívocos, num lugar entre as nações. Já não somos o terreiro dos mata-mouros, o quintal dos ingleses, o porto de passagem da riqueza, o ponto de fuga da nobreza para o Brasil, a chacota da Europa, o quarto de dormir do Dr. Salazar, o tolo irmão que faz revoluções com cravos, os construtores de auto-estradas pagas pelos amigos europeus, os da recessão airada que lavra a retoma com as unhas dos pés. Agora, simplesmente, somos subdesenvolvidos e tudo devemos fazer para conservar esta oportunidade histórica única. Na religião temos os esforçados padres, com o olho para o dinheiro que se lhes reconhece, a prometerem com encontros e congressos em Fátima alimentar a crendice até ao dia do juízo final. O prémio Nobel obedece às marés políticas mas depois de outorgado não é retirado. Resta ao povo acarinhar e regar o futebol como a sua gerbera pessoal.

O futebol é a nossa Pátria! Esqueçamos esses delírios bagaceiros pessoanos da língua como Pátria. Os que nos une é o futebol. Desde o jovem glabro à intonsa velhota todos irmanam pelo esférico. Quem não verteu uma lágrima de comoção perante os cartazes, produto espontâneo de um grupo de amigalhaços montijenses, espalhados na antiga Aldeia Galega: “Montijo com a seleção / Ricardo no coração”? Faltou dois “esses” na palavra “coração”. Não se pode ter tudo. Regozijemo-nos com o que temos. Para o próximo torneio, de certeza, este grupo de confrades, após mais uma das suas regadas almoçaradas, fará melhor.

Outras razões se levantam para protegermos o futebol. Será ele que moldará a futura sociedade portuguesa. Depois da Casa Real ter parado a emissão de títulos nobiliários, através do futebol, os portugueses podem voltar a ter reis e príncipes. Dentro das quatro linhas mágicas forma-se uma nova realeza, pindérica em nobreza e não em riqueza, que restaurou o fausto das velhas cortes com roupas haute couture e acessórios look-chic forrados de diamantes. E deram-nos a melhor parte do jogo: a conferência de imprensa. Lugar mítico que transformou as tertúlias nos cafés em reuniões de jarretas do galão e da torrada mastigada com banalidades literárias. Quem nunca assistiu ao descarregar de opiniões depois de um renhido jogo perde o maior acontecimento cultural do país. O futebol tem um efeito mais comezinho, mas de vital importância, quando os resultados educativos revelam as fracas capacidades intelectuais do povo. Através dele podem criar-se génios com 90, ou menos, de QI.

E as alegrias que nos proporciona são impagáveis. Nós somos católicos de gema, e ver o Ronaldinho madeirense mostrar a dentadura nova para o Altíssimo, sempre que agradece uma dádiva ou pede protecção para cumprir decisiva tarefa, é uma imagem emocionante que ficará cauterizada nos nossos corações valentes. Assim se compreende os sacrifícios dos portugueses pelos heróis de Marienfeld (agora na senda para o Euro2008). Participar de borla em anúncios de Bancos ou empresas de gasolina mostra onde pode ir a devoção. Claro que para um observador exterior esta atitude parece de idiotas comidos pelos criativos da publicidade e marketing, pois os nossos craques para entrarem em anúncios publicitários cobram exorbitâncias. Mas não é! É uma retribuição justa por tudo o que recebemos.

O dinheiro faz milagres. Quanto maior o pote, maior o milagre. Muito dinheiro põe as pessoas agarradas à bandeira de outro país a trautear o hino, prodígio que nem as mais arrasadoras derrotas militares ou exemplares colonizações faziam. Mas também o carcanhol em excesso forneceu critérios objectivos para as mulheres, ou homens que não temem mostrar os seus sentimentos, definirem o sex-appeal de um homem. Para as nossas avós classificarem um homem como interessante era uma carga de trabalhos. Tinham de invocar memórias aprendidas nas novelas românticas ou gostos passados de mãe para filha e acabavam casadas com um emproado bigodaças de monóculo. Hoje basta olhar a conta bancária e o bonito aparece aos órgãos dos sentidos. O proveito material do futebol quantificou, logo objectivou, tornou científica, uma avaliação subjectiva, colocando o conceito de sexy no firmamento das verdades matemáticas. E possibilita que velhas e novas em uníssono se babem por homens que de outra forma não ligariam.

Apesar do escarcéu nas ruas ninguém se lembrou de dar um nome aos nossos craques. Ver os telejornais repetirem “craques” até à exaustão foi muito feio porque se confunde com “traques”. E seria tão fácil encontrar um nome adequado. Nos idos anos sessenta Eusébio & companhia chegaram com 30 contos e o chapéu do polícia inglês. Chamaram-lhes “os magriços”. Os nossos heróis desceram do Boeing, com jactos de água amarela e vermelha regado, com um prémio de 50 mil euros e sacos de griffe para as namoradas. Deviam chamar-lhes “os gordiços”.

Por tudo damos graças a Scolarão e Madaílão. Em sinal de gratidão todos devíamos exigir aumentos dos nossos impostos para que os heróis da Alemanha não paguem. E não ficar por aí. Pedir mais. Muito mais. Queremos mais impostos para isentar os clubes. Queremos mais impostos para construir estádios. Queremos mais impostos para pagarmos as dívidas do totonegócio. Menos ais. Menos ais. Menos ais. E mais impostos. Queremos mais. Não é justo que um Banco pague o ordenado do Scolarão. Como patriotas esse encargo deveria ser nosso.
Proverbial sabedoria

Importar provérbios de culturas diferentes da nossa conduz a mal-entendidos e à alienação da nossa percepção do que nos rodeia. (Ficamos parvos, diz-se em bom vernáculo). O caso mais flagrante veio da China com a importação de “uma imagem vale mais que mil palavras” para o nosso quotidiano. De facto, o aforismo parece assentar-lhe como uma luva, pois em todos os lares e bares ocidentais se fala de imagem para aqui, imagem para acolá. Esta parlenda nada significa na nossa cultura alicerçada na filosofia clássica grega e no judaico-cristianismo. Por mais sentido estético – (do grego, “o que aparece aos sentidos”) – que a civilização grega cultivasse para elevação da alma, a sua interpretação e relação com o mundo fazia-se através do Logos (a “razão” entendida como raciocínio em actividade). Quanto ao cristianismo, – uma excreção do judaísmo, – basta uma rápida leitura da Bíblia para vermos que no início era o Verbo e não a Imagem. Na nossa tradição cultural uma imagem não vale mil palavras. Estas valem por si e são explanatórias das imagens. Veja-se a televisão. As imagens nada significam sem o texto adicional. Tal como as embalagens de sumos ou iogurtes. Sem a legenda, o consumidor, dificilmente, identificará o sabor.

Os americanos bem compreenderam isso na guerra do Vietname e para a invasão do Iraque vieram melhor preparados. Em vez de excluir os jornalistas, deixá-los ao deus dará a captar imagens e a escrever o que lhes desse na telha, optaram por discipliná-los. Não cometeram o erro de escolher apenas entre os que fazem o coro da administração Wbush, mas alargaram o leque até aos que, satisfeitos pelo furo jornalístico, eram sensíveis ao apelo do profissionalismo e da deontologia, feito pelos especialistas em mind control dos serviços secretos. Eis que surgem os jornalistas “embeded”. Profissionais do audiovisual incorporados nas colunas militares encarregados de captar as diversas encenações que foram feitas no caminho para Bagdad. O resultado foi espectacular. Esta guerra ficou na História como a guerra que mais se mostrou e que menos se viu. Com cenas significativas como o resgate da soldado Jessica Lynch filmado naquele belo efeito gláucico nocturno. Ou, o bombardeamento (por um engano dos americanos) de uma coluna no norte em que o jornalista, possuído pela febre de mostrar, não desliga a câmara, o sangue pinga para a lente, a imagem treme com o pânico geral, resultando numa verídica reportagem filmada no estilo Blair Witch Project.

Mas o funcionamento em carrossel das ideias – nascem num ponto e dão a volta pelas cabecinhas tontas do mundo, que até parece que o desadornado trolha e o granítico intelectual falam a uma só voz – chama a atenção para a nossa verdadeira sabedoria proverbial. É conhecido o adágio popular: “o que come o rato, come o gato”. O que, transposto para o blablabla mundano, equivale a dizer: “o líder alfa sentencia e o político menor repete”. Nos dias de hoje temos três alfas na manada mundial: Wbush, o Papa (seja ele qual for) e Tony Blair, (não que Blair tenha alguma originalidade, é uma fotocópia rasca de Wbush, mas os intelectuais europeus andam doidos como as galinhas para encontrar a figura freudiana do pai no seu quintal). Estes oráculos falam e o mundo repete num barulho ensurdecedor variantes do seu palavreado convulso. E a capacidade de discernimento e interpretação dos factos foram dar uma volta ao bilhar grande.

Quando partiram para a invasão do Afeganistão, os americanos tiveram em linha de conta a sabedoria contida noutro adágio: “ao chefe e ao capitão não se deve apanhar de calças na mão”. Tomaram as suas precauções e criaram um smoke screen com a base de Guantanamo. Arrebanharam uns tipos pelas ruas de Cabul, vestiram-nos com macacões laranja-avermelhado, e montaram um circo para inglês ver. E resultou. Toda a fauna dos direitos humanos – organizações, juristas, pessoas humanitárias, jornalistas – andou entretida com um osso oco, deixando as mãos livres aos americanos para actuarem como sempre o fizeram, ou seja, à margem da lei. Os autênticos militantes da al Qai’da estão a ser torturados noutro lugar, longe dos olhares indiscretos, e das patranhas dos direitos humanos. Os verdadeiros atropelos fazem-se nas prisões dos países elevados a democráticos por decreto do Pentágono, como o Egipto, o Paquistão, a Albânia, e na base de Diego Garcia ou nos porta-aviões americanos. Guantanamo serve apenas para desviar a atenção, é um engodo que os media engoliram e, como “galo capado galinha de lado”, nem se dão ao trabalho de investigar para além da imagem fornecida pelos especialistas da administração Wbush. Aos jornalistas e comentadores actuais falta-lhes a sapiência de “quem desconfia de tudo, adivinha metade” e preferem acreditar em tudo para fazer a vontade aos patrões da comunicação social que militam nos partidos que dividem entre si o poder, (e por isso não podem fazer muitas ondas, porque “homem fraco não parte pote” se quiser comer com os mandantes do mundo).

Nas costas portuguesas tem arrimado do melhor material alguma vez produzido no mundo que agora exportamos com o sucesso garantido. Talvez por “quando em terra anda gaivota, é o mar que a enxota”, ou porque oitocentos anos de cruzamentos genéticos estão, finalmente, a dar frutos, o certo é que ver o arteiro Durão Barroso, na China, a mandar postas de pescada ao Comité Central do Partido Comunista, encheu-nos de envaidecimento. Se Mao Tsé-Tung fosse vivo, tirava-lhe os cueiros, aplicava-lhe uns bons açoites no alvo rabioche de bebé e diria em maoística máxima: “melão só vai com vinho tostão”.

Como sempre o povo formado na comunicação social tem uma saída. Seguindo a sabedoria das mulheres da mítica série de TV “Dallas” pode comprar um guarda-roupa novo, porque “calça branca em Janeiro é sinal de pouco dinheiro” e é uma cor indicada para futuros empregados de mesa.
Bonito de se ver

Viver finalmente na sociedade que realizou o céu na terra abençoou-nos com vantagens que as gerações passadas nem sonhavam. Escritores mais ou menos visionários deram alguns lamirés sobre o futuro. Jules Verne imaginou uma grande parte da tecnologia que os epígonos irão realizar numa narcisista exibição de artefactos em feiras mundiais de geringonças. Começou à sombra da torre Eiffel a fantasia de que a vida da Humanidade estava irremediavelmente facilitada. Aldous Huxley previa uma vitória da genética sobre a diversidade humana quando a ciência governasse. E nas mãos das Comissões de Ética relegamos o patriarcal poder de distinguir o Bem do Mal. George Orwell falava do triunfo da política do controlo quando o mundo se transformar numa quinta governada pelos porcos. Esse momento chegou e as câmaras de vídeo-vigilância são as melhores amigas do polícia e do político. H. G. Wells concebe uma sociedade de aparente perfeição superficial onde o ameaçador perigo vem das profundezas. Amarga realidade dos nossos dias que toca a todos. Tanto à top model quando o espelho lhe devolve as primeiras rugas, como ao proletário que acreditava ter encontrado a fábrica eterna, como ao empresário confrontado com os ataques ao lucro ilimitado. De uma maneira geral, nenhum dos escritores se enganou nos quadros futuristas que descreveu. Mas o seu poder imaginativo não foi capaz de alcançar o que o porvir realmente nos destinava, ou seja, a realização da sociedade perfeita. Nenhum deles imaginou Wbush.

Os actuais 6 mil milhões de habitantes da terra não dão o devido valor à sorte que tiveram de serem contemporâneos do político americano. A sua obsessão pela “democracia” e pelo “processo político” revolucionaram o mundo, tal como, as canetas de feltro de Yves Saint Laurent revolucionaram o corpo da mulher quatro décadas antes. Os detractores dirão que Wbush apenas papagueia uma teoria de recurso depois das justificações para a invasão do Iraque se revelarem patranhas. Mas isso é o mesmo que dizer que Yves Saint Laurent queria unicamente ver modelos nuas em vez de criar Haute Couture. Pressupõe uma sonsice pouco própria de um homem temente a Deus. A verdade é que um e outro tornaram o planeta mais bonito. E fresquinho para viver.

A olho desarmado parece que Israel, aproveitando o inusitado poder que tem na actual administração americana, está a redesenhar a seu favor o mapa do Médio Oriente. Afastando Saddam Hussein que ajudava financeiramente as famílias dos suicidas. Apertando o Irão para continuar a ser única potência nuclear na zona. Matando palestinianos à tripa forra, tornando-lhes a vida impossível até conseguir correr com todos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Mas, numa análise armada da lente da crítica, o caso muda de figura. Israel, tutorada por Wbush, deu ao mundo a maior lição de civismo alguma vez vista. Somente equiparável a esse outro momento chave da História do civismo mundial – a introdução, no boxe, das regras do marquês de Queensbury. O povo de David trouxe um novo conceito para a resolução de conflitos. Em vez do recurso à dispendiosa e traumatizante guerra, ensaiam na Palestina uma inovadora abordagem, sem fogo nem sangue. Mais de acordo com o “efeito peeping Tom” dos omnipresentes Meios de Comunicação Social convenientemente auto-censurados nas imagens que podem mostrar. Isto é, o povo judeu adaptou-se aos tempos da TV em directo e a cores. Quem está lembrado da primeira evacuação da Faixa de Gaza, em 1967, transmitida em diferido, na fealdade do preto e branco, viu seres andrajosos, esqueléticos, a correrem para salvar a vida. Mulheres agarradas a crianças com o terror espelhado na cara. Tanques e bombas arrasando as suas míseras casas. Cadáveres misturados com areia. Homens carregando cadeiras desengonçadas. Uma chusma desnorteada a desaguar na Jordânia. E, compara com a recente retirada dos colonatos da mesma cobiçada zona, verifica perplexo, que não foi disparado um único tiro. Foram destinados quatro soldados para cada indivíduo a retirar. Dois para os membros inferiores outros dois para os membros superiores. Vivazes e esperneando as pessoas eram metidas em autocarros com destino a novel urbanização. Em vez de, moribundas, esticando o pernil, em ambulâncias, na direcção da quinta das tabuletas. Uma coisa tão bonita de se ver. Ficará na História este método revolucionário do exército israelita e já se pensa aplicá-lo no Iraque, no Afeganistão, no Irão e na Coreia do Norte. E… porque não, no Líbano.

Em Portugal, o blusão verde de José Cid inaugura a TV a cores, decorria o ano de 1980. Desde esse dia a nossa vida mudou radicalmente. Passamos a viver os acontecimentos com mais intensidade dependentes da saturação de cor. Se bem me lembro, umas imagens a cores do Primeiro-ministro, de mão dada com a esposa, deambulando nos jardins de S. Bento, valiam mais, emotiva e culturalmente, que cinquenta programas, a preto e branco, do Vitorino Nemésio, passeando pelo quotidiano da alma portuguesa. Com a TV a cores ficámos mais católicos ainda. Em 1978 a eleição de João Paulo II não atraiu uma mosca. Era um assunto para beatas mais dedicadas. O ecrã a preto e branco nem permitia ver bem se o fumo era branco ou preto. No entanto, o espectáculo da morte e eleição do Papa parece concebido de propósito para uma transmissão colorida. Aqueles dourados, os brancos imaculados, os vermelhos vivos, o campo de profundidade das salas, o fausto das paredes, velhos de cabelos encanecidos movendo-se ao “ralenti”, um regalo para as câmaras digitais. Os papícolas compreenderam o poder prosélito e fotogénico dos seus rituais e abriram-se ao mundo do audiovisual com os resultados espectaculares que se conhece. Com a TV a cores a bandeira americana fica mais bonita, mais hipnótica, mais rabo de Bruce Springstein na capa do “Born in USA”, e ficamos a ver passar os aviões da Air Guantanamo para fazer um favor ao amigo Wbush.

terça-feira, outubro 10, 2006

Justiça zarolha

A ziguezaguear Portugal dá passos de gigante para a excelência. Somos bons não há hipótese. E, alguém deveria informar a RTP de que não precisa debelar os dinheiros públicos para desencantar portugueses de sucesso por terras ignotas para nos levantar a auto-estima. (Antigamente, um aparelho ideológico de Estado como a TV era um instrumento essencial para a classe dominante perpetuar o seu poder, hoje, é apenas mais um fardo na ilharga do contribuinte). Os tempos mudaram. Os lusitanos do verso decassílabo voltaram. Só que desta vez não precisamos do rei de Melinde para ouvir a nossa gesta. Nem de Vasco da Gama para a contar. Os neo-nautas dispensaram as caravelas e chegam ao sítio para onde vão remando na inteligência. Os novatos marujos têm-na em tão grande abundância que se arriscam a insistentes assédios para irem estudar e trabalhar nos Estados Unidos. E, é difícil dar um pontapé numa pedra sem que brote um exemplo de que atingimos outra “idade de ouro”.

Existe uma área onde jogamos com um baralho completamente novo e damos cartas. Onde todos os dias nos rimos das barbas do gigante Adamastor, avançamos com a nau capitânia, dobramos Cabos das Tormentas, e damos ao mundo novo carregamento de especiarias, sob a forma de enfunadas ideias para rever e aprimorar sistemas judiciais. Longe vão os tempos que trabalhar num tribunal era mais uma comenda que uma estafa. Antanho tirava-se a magistratura para levar uma vidinha em velocidade de cruzeiro. Numa sociedade desde sempre governada por licenciados em Direito era justo. Se eles não tratassem dos seus, quem trataria? Recentemente, o ruído dos processos mediáticos apanhou-os desprevenidos. A inexistência de um Relações Públicas nos tribunais para decifrar, perante câmaras e microfones, o quase divino ritual do procedimento judicial, deixou o telespectador com a ideia errada de que aquilo era mais uma instância da papelocracia. Que por ali andavam uns calaceiros a deixar para amanhã o que podes fazer hoje. E, entrementes, iam despachando para a cadeia quem lhes aparecia pela frente como se o seu ordenado disso dependesse. (Como costumam dizer: mais vale prender um inocente que deixar escapar um criminoso)

Se os juízes fizessem como os empresários, que não dispensam o PR na fabricazita, beneficiariam a sua imagem e poderiam passar por heróis aos olhos do povo. O Public Relations só tem que inventar uma mentirola plausível para fazer circular nos meios de comunicação, depois a tinta corre por si. Aquando do aumento do IVA assistimos a uma espirituosa fabricação do engenhoso pessoal das Relações Públicas como ciência académica. Escarrapacharam nos jornais e noticiários, “as grandes superfícies absorvem o aumento do IVA”, como se fosse uma notícia séria. Os jornalistas pegaram na deixa e garantiam a pés justos que não haveria aumentos de preços. Mas alguém, no seu perfeito juízo, pensa que seriam destacadas legiões de empregados para alterar um ou dois cêntimos nas etiquetas? O procedimento correcto é outro. Espera-se que esgote o stock e, no próximo, aumenta-se dois ou três euros. Isto chama-se iniciativa empresarial aplicando a contenção dos custos na mão-de-obra.

Felizmente na Justiça surgiu uma luz no início do túnel. Pela sua novidade, não é bem uma luz, é mais uma candeia que vai à frente e alumia duas vezes. O memorável caso da Presidente de Câmara que passou uma temporada no Brasil em substituição da prisão preventiva fará jurisprudência nacional e internacional. (Somos pioneiros neste caminho aéreo para as terras de Vera Cruz, via Espanha, estreado pelo saudoso padre Frederico, que não mais voltou). Mas agora estamos na presença de um substituto aos oito meses (ou três anos) de prisão preventiva em Tires ou no Estabelecimento Prisional de Lisboa (conforme o sexo do criminoso). O próximo passo a dar é óbvio. Se não queremos ser acusados de ter boas ideias mas ser frouxos na sua concretização. É preciso criar as condições para que todos os portugueses caçados a praticar ilícitos criminais, em alternativa à prisão preventiva, lhes seja dada a possibilidade de irem para o Brasil (uns vouchers da agência Abreu distribuídos pelo juiz do Tribunal de Instrução Criminal chegariam). E, no regresso à Pátria, concorrer a um cargo público para obter imunidade, enquanto não chega a data do julgamento. Trocava-se o risco de apanhar uma doença esquisita numa cadeia portuguesa, por um menos perigoso bronzeado em Copacabana. E com a vantagem de facilitar a montagem do circo mediático do costume. O preso preventivo poderia chegar ao aeroporto, cavalgando uma brasileiríssima “zanga-burrinha”, circundado por jornalistas a captar declarações.

A prisão preventiva em Portugal ultrapassa qualquer país da América Latina. Tomara estarmos ao nível da Venezuela que mandou o piloto do Citation X para um apartamento. Que mesmo assim reclamava para os jornalistas desconhecendo a sorte que tinha. Em Portugal seria metido numa cela de 4x3 metros juntamente com mais vinte e tal facínoras. À noite teria que ir buscar um colchão e duas mantas com pulgas para dormir no chão. Não seria fornecida uma lâmina de barba, nem um pedaço de sabão azul, para não falar na escova de dentes e pasta dentífrica, e, pela certa, com a complexidade do caso, ficava três anos sem julgamento.

Com o caso Felgueiras a justiça parece bem encaminhada apesar de ainda ouvirmos alguns disparates. O último posto a circular é deveras hilariante. Pedir a inversão do ónus da prova para combater o crime fiscal e o enriquecimento ilícito, é uma baboseira de quem nunca entrou num tribunal com olhos de ver. (Basta verificar o lugar sobranceiro na sala de audiências do representante do Ministério público para se perceber que não há igualdade de forças entre acusação e defesa). Em Portugal, o acusado entra no tribunal condenado a priori e tem que provar a sua inocência. O que não é nada fácil, porque não possui os meios do MP, ou então é rico, e talvez tenha sorte. Em Portugal, o trabalho do acusador esgota-se na redacção da acusação, na sala de audiências é mais uma figura decorativa. Nem precisa falar. Quem interroga as testemunhas é o pretensamente neutro juiz. Por regra o que está escrito na acusação prevalece como provado. Por isso, não lembra ao diabo aparecer na praça pública inteligentes legisladores a pedirem a inversão do ónus da prova. É, no fundo, o mesmo que pedir para chover no molhado. Um sinal de que a justiça portuguesa não é cega mas zarolha. Toda a gente sabe que o problema da impunidade dos ricos face à lei reside precisamente no dinheiro que têm.